Maria do Mar I

Fragmento 171


Há muitos anos atrás, talvez dez, ou nove, não sei bem, escrevi nas costas de uma ficha sobre figuras rítmicas a seguinte nota: «Maria do Mar - Das ideias em geral - Crítica da Razão Pura - p. 308 - Poética».
 
Agora, como estou precisamente a trabalhar num dos livros da Maria do Mar, decidi-me a investigar essa nota.
 
O receio era tanto, passados todos estes anos, de que o sentido da nota se revelasse completamente opaco, que andei a inventar muitas coisas para fazer, em vez de investigar a nota.
 
Escrevi três sonhos e ainda uma pequena crónica e depois fiquei, durante cerca de uma hora, a olhar para o computador.
 
Comecei a pensar: «Já é tarde. Sinto-me desanimada. Já passou muito tempo. Não tenho forças para ir ver a nota.»
 
A Crítica da Razão Pura do Kant, por causa desta nota que estava pendurada na parede com fita cola, ao lado da escrivaninha, já desde o final de Julho que aguardava em cima da cauda do piano, em posição de destaque.
 
Felizmente, um outro lado de mim decidiu falar: «Toma o teu tempo, mas não desistas. A noite ainda está longe - e tu já dormiste a sesta... Olha para o ar o tempo que quiseres, antes de ires buscar o Kant, mas dispõe-te pelo menos a ir buscá-lo.»
 
Mais uma vez, e curiosamente, a boa vontade funcionou, ao contrário da força de vontade.
 
Pude então maravilhar-me com o conteúdo da nota, que surgiu brilhantemente intacto, passado tanto tempo, como uma mensagem lançada ao mar dentro de uma garrafa de água.