Francisca M. (1)



Parece que estou a vê-la, a Francisca, no terraço da última casa em que morámos, com a Maria do Mar, em Viana do Castelo, antes de se operar nela aquela estranha reviravolta que a transformou completamente, portanto, antes da escrita do livro de orações.

Com o rosto apoiado sobre as mãos e aquele misto de candura e desencanto na expressão, uma vaga tristeza na forma como inclinava a cabeça, em suave abandono, e quase uma espécie de ausência, um estranho e perpétuo desligamento, que poderia até confundir-se com fragilidade, podia ver os seus largos olhos cinzentos que fitavam a paisagem, poisando nos campos como um pássaro que voasse da cúpula de um sonho ou do topo uma nuvem.

Parece mesmo que estou a vê-la, agora, tão perto, e ao mesmo tempo inatingível.

Em redor de uma mesa de verga, nesse terraço de velhos mosaicos de tijoleira quebrada e cujo barro se esfarelava como minúsculas migalhas de um pão duro e avermelhado, ao fim da tarde, gostávamos todos de beber, estendidos ao sol, a nossa colecção de bebidas fortes. Bebíamos rum, tequilla, às vezes vinho do porto, irish coffee ou vodka com limão.

Nessas alturas, estendidos nas espreguiçadeiras, cada um com o seu livro no colo, viajávamos, imóveis e em silêncio, sob o sol, diante da paisagem.

Julgávamo-nos acompanhados, mas estávamos, cada um, isolados na nossa cápsula invisível, submersos nesse curioso estado de suspensão anestesiada e nessa estranha solidão que é, para quem a conhece - a paradoxal solidão entre os outros.