Sobre o teatro balinês - Artaud

Fragmento 166
 
«O que há, com efeito, de curioso em todos esses gestos, nessas atitudes angulosas e brutalmente cortadas, nessas modulações sincopadas do fundo da garganta, nessas frases musicais que abortam, nesses voos de élitros, nesses frémitos de ramos, esses sons de caixas ocas, esses rangidos de autómatos, essas danças de manequins animados, é: que, através do seu dédalo de gestos, atitudes, de gritos lançados ao ar, através de evoluções e das curvas que não deixam nenhuma porção do espaço cénico inutilizada, se liberta o sentido de uma nova linguagem física com base em signos e não já em palavras. Aqueles actores com os seus fatos geométricos parecem hieróglifos animados. E tudo, até mesmo a forma dos vestidos que deslocam o eixo da altura humana, cria, ao lado da roupagem desses guerreiros em estado de transe e de guerra perpétua, uma espécie de roupas simbólicas, roupas segundas que inspiram uma ideia intelectual e se ligam, por meio do entrecruzamento das suas linhas, a todos os entrecruzamentos das perspectivas no ar.»
 
[trad. de José Gil in Os Poderes da Pintura (2015), p.17]
 
«Efectivamente, o que há de impressionante neste espectáculo, - tão bem feito para nos desviar das nossas concepções ocidentais do teatro, que frequentemente lhe recusarão qualquer qualidade teatral, ainda que esta seja uma das mais belas manifestações de teatro puro que aqui nos foi dada a testemunhar, - o que é impressionante e desconcertante para nós, Europeus, é a intelectualidade admirável que sentimos crepitar por todo o lado no interior da trama serrada e subtil dos gestos, nas modulações infinitamente variadas da voz, nesta chuva sonora, como de uma imensa floresta que gotejasse e suspirasse, e nestes rendilhados, também eles sonoros, dos movimentos. De um gesto a um grito ou a um som não existe passagem: tudo corresponde como que através de bizarros canais cruzados a um mesmo espírito.»
 
(...)
 
«Uma impressão de inumanidade, de divino, de revelação milagrosa se destaca ainda da requintada beleza dos penteados das mulheres: desta série de círculos luminosos sobrepostos, feitos de combinações de plumas ou de pérolas multicoloridas e de um matizado tão belo que a sua reunião tem um aspecto justamente revelado e cujas bordas tremem ritmicamente, respondendo com espírito, parece, às vibrações do corpo. - E há ainda os outros penteados com aspecto sacerdotal, em forma de tiaras e encimados por penachos de flores em linhas rectas, cujas cores se opõem duas a duas e assim se casam estranhamente.»
 
«Este conjunto lancinante e cheio de foguetes, de fugas, de canais, de desvios em todos os sentidos da percepção externa e interna, compõe para o teatro uma ideia soberana e tal que nos parece conservada através dos séculos para nos ensinar aquilo que o teatro jamais parou de ser. E esta impressão duplica-se com o facto de que este espectáculo - popular, parece, e profano - seja como o pão elementar das sensações artísticas desta gente aqui.»
 
«À parte a prodigiosa matemática deste espectáculo, o que me parece feito para nos surpreender e para nos espantar ainda mais é este lado revelador da matéria que parece de repente espalhar-se em signos para nos ensinar a identidade metafísica do concreto e do abstracto e em gestos feitos para durar. Porque o lado realista encontramo-lo em nós, mas elevado aqui à enésima potência, e definitivamente estilizado.»
 
«Neste teatro toda a criação vem da cena, e encontra a sua tradução e as suas origens íntimas numa impulsão psíquica secreta que é a Fala antes das palavras (la Parole d'avant des mots).
 
[Artaud, «Le Théatre et son Double» in Oeuvres Complétes, Gallimard, 2004, pp. 538-539, trad. minha]