Sobre o mínimo espaço

Sonho CXLV
 
 
Estávamos num mundo totalmente hierarquizado, com poderes firmemente estabelecidos.
 
A Maria do Mar olhava sentada no chão de um terraço para as varandas envidraçadas de duas casas em frente.
 
As casas eram feitas de madeira pintada e as varandas estavam suspensas do primeiro andar.
 
As varandas eram brancas e azuis e tinham em vez de beirados duas palas de madeira rendilhada e pintada nos mesmos tons.
 
A Maria do Mar observava cuidadosamente o interior das casas que se via através do quadriculado dos caixilhos brancos das janelas das varandas.
 
Podia ficar ali entretida durante horas, pois adorava olhar para o interior das casas e imaginar como as pessoas aí viviam.
 
Porém interrompia esta actividade e saía do terraço para entrar numa loja de roupa.
 
Precisava de comprar qualquer coisa urgentemente - porque se sentia tão feia e queria sentir-   -se bela de repente.
 
Encontrava no meio de máquinas fotográficas uma saia de veludo vermelho, uma suave camisa de seda vermelha e ainda uns sapatos que eram feitos de um material esquisito, uma borracha macia.
 
Sentia-se tão ansiosa e desconfortável que saía da loja vestida com a roupa sem tirar os preços nem as etiquetas, com uma sensação de culpa insuportável.
 
Se ao menos aqueles sapatos ultra-modernos lhe aliviassem o vazio tremendo que a devorava por dentro... e se a suave seda da caríssima camisa pudesse travar o angustiante movimento da hélice fatal que lhe girava na alma, reduzindo tudo a pó e a nada...
 
Parecia não encontrar neste mundo um modo eficaz de escapar de si mesma.
 
Passado algum tempo, entre dois homens, numa esplanada, debaixo de uma mesa, encostava cada uma das suas pernas a cada um deles, numa onda de luxúria.
 
Um deles era tímido e por isso a Maria do Mar escolhia o pior dos dois, como já vinha sendo hábito.
 
Depressa se arrependia, fugindo por um elevador para a subcave desse mundo fortemente hierarquizado.
 
Tinha despertado nesse homem um desejo insatisfeito que o levava a querer vingar-se e tinha agora de fugir como uma ratazana entre os móveis abandonados e a comida que armazenavam nos corredores das imensas subcaves.
 
A fruta estava cuidadosamente distribuída em cima de tabuleiros cobertos com folhas de papel absorvente, para não apodrecer, e a Maria do Mar escondia-se atrás de um armário enquanto o homem passava a correr, em busca de vingança.
 
O coração batia-lhe tanto que parecia querer saltar-lhe pela garganta, como um pássaro alucinado de Hitchcock.
 
Mas a Maria do Mar não se mexia, encolhida de cócoras atrás do armário e procurando com o corpo ocupar o mínimo espaço.
 
O mínimo espaço possível.