Sobre a eventualidade de se evaporar


Sonho CXIV


Estava preso numa espécie de bunker, num quarto isolado.

Talvez tivesse sido ali preso por cometer alguma espécie de crime, ou então por me ter sido diagnosticada uma doença mental que me condenasse ao asilo.

A razão de estar ali era incerta, mas a verdade é que o isolamento forçado parecia salvar-me da catástrofe que se desenrolava no exterior.

Ouvia explosões e desabamentos, do lado de lá das paredes.

Por isso, embora estivesse preso, sentia-me aliviado por estar a salvo.

Entretinha-me a observar os insectos que caminhavam sobre as paredes de cimento, sentado de pernas cruzadas no chão.

Não havia, nem cama, nem mesa, nem cadeiras.

Um grupo de formigas gigantes e douradas lutava estrategicamente contra um grupo de pequenas aranhas.
 
Ardilosos, cada um dos grupos formava os seus exércitos.

As formigas investiam contra as aranhas em formações criativas e singulares, e as aranhas organizavam-se, em resposta a cada uma das investidas.

Numa dessas vezes em que atacavam e contra-atacavam, pude observar que as aranhas formaram um pelotão com a forma de uma besta medieval, e noutra pareceram, todas juntas, formar o desenho de uma seta.

De cada confronto pareciam resultar numerosos mortos, mas os grupos, ainda assim, não desistiam de lutar e repetiam as suas investidas.

Em cada uma dessas investidas, as formas dos pelotões mudavam, como num caleidoscópio, e eu reflectia, muito interessado em tudo aquilo: «Que estranha, a Natureza. Mesmo nas suas erupções de morte e violência, não deixa de ser infinitamente criativa.»

Entretanto, parece que a catástrofe fez ruir as paredes do meu bunker, porque me encontrei em liberdade.

Caminhava ao longo de uma praia vazia quando apareceu Irondina, uma mulata invulgarmente bonita, de pele incrivelmente dourada e muito alta, com os membros tão esguios e tão finos que parecia uma gazela.

Juntos, avistámos uma torre de vidro que emergia do mar e percebemos que aquilo era a terra prometida.

Eu via cadeiras de palhinha branca através das varandas de vidro.

Entrevia ao longe o interior habitado de alguns apartamentos e observava que outros apartamentos estavam ainda vazios.

Mas era uma torre tão grande e tão alta como um mundo, plantada no meio do mar.

Queríamos encontrar o caminho para lá e tanto o desejámos que descobrimos umas caves que desciam por baixo das ondas.

Se as caves se estendiam por baixo do mar, deveria existir uma passagem.

Ao longo desses corredores subterrâneos experimentámos várias portas, sem êxito.

A humidade e o bolor escorriam pelas paredes escuras que pingavam.

Por fim, descobrimos um local que se destacava pelo brilho e pelo aspecto intacto das cores.

Só podia ser ali.

Um forte portão gradeado, alto e negro, separava-nos das salas brilhantes e luminosas.

O portão parecia um jogo, com uma colecção de enigmas que davam sinal piscando com pequenas luzes verdes, vermelhas e amarelas em vários pontos diferentes.

Tínhamos de tocar nesses pontos mágicos para fazer com que o portão se abrisse e, por fim, conseguimos realmente abri-lo, sem que eu percebesse como.

Imediatamente o portão se fechou, mal nós passámos.

Nesse momento olhei para trás e vi um outro homem que afinal nos tinha seguido e que parecia estar a morrer electrocutado contra as grades do portão.

A sala descia em declive, como a encosta de um monte, e nós corremos para o fundo, até chegar a uma outra sala de festas que tinha um tecto em abóbada, muito alto, com feixes de fios eléctricos estendidos em vários pontos.

Podíamos ver que o homem estava ainda entalado no portão, aos gritos.

Mas de súbito ele desapareceu, como se se evaporasse.

De imediato percebemos que, cada vez que passássemos uma prova, o resto desapareceria, como moléculas num plano invisível.

Era ao mesmo tempo assustador e empolgante.
 
De repente senti o sangue a correr-me rápido nas veias, com uma adrenalina muito intensa.

E se eu me evaporasse?...

No fundo, quem se evaporava só desaparecia para os que superavam a prova, saltando para o novo plano.

Quem se evaporava, só se evaporava do horizonte, mais nada.

Permanecia no seu antigo mundo, na sua velha dimensão.

Parar era exactamente morrer.

Na sala de festas, um escritor vaidoso falava da sua própria obra, dizendo, com extrema satisfação: «Tem um significado polissémico.»

Estava lá uma velha senhora que se chamava Silvina da Costa Moreira e que fazia um comentário mordaz, em surdina.

Eu queria confirmar o seu nome e perguntava-lhe: «Como se chama?»

Pelos vistos, ser o autor de algum dito inteligente não era uma coisa inócua, naquele meio, porque ela me respondia, com uma expressão bastante ameaçadora: «MOREIA.»

Lembrei-me imediatamente daquele peixe horrendo com a boca pejada de perigosos e pequenos dentes triangulares e arrepiei-me todo.

«Caramba!... Onde está a minha companheira?...»

Vira-a trepar pelas paredes para ganhar balanço e voar por cima dos altos feixes de fios eléctricos, mas já não a via em parte alguma.

Tinha-se evaporado para uma nova dimensão.

Portanto, eu estava a ficar atrasado.

O melhor mesmo era despachar-me, antes que o resto daquele mundo também se eclipsasse no ar, com uma franja de vapor.