O Tempo

Fragmento 129
 
 
Na auto-estrada Lisboa-Cascais, a visão das colinas.
 
Uma linha de verde, dobrada por outra que é um renque de choupos e de eucaliptos...  e, nessa linha delicada que divide a curva suave da colina contra o céu, uns tufos... uns fofos tufos de arbustos quase imperceptíveis que ali emergem, contrastando no cinza-azulado do céu imenso com a sua lógica de poeira dispersa e essa ironia pontual e quase infantil que tem o pequeno quando aparece no meio do grande.
 
O carro avança como uma nave entre o ritmo dançado das colinas, entre a conversa e a ilógica contrapontística das suas linhas cantantes, e o meu peito aperta-se com uma estranha ansiedade, essa emoção dolorosa dos encontros, que nunca se sabe quando irão terminar, ainda que o fim seja certo.
 
«É só isto.» Penso eu. «Eis tudo.»
 
Mas o coração enche-se então de um infinito, uma espécie de «ar».
 
Depois da ansiedade amorosa o coração expande-se e respira e eu vou nas linhas das colinas tanto como vou na linha suave que é a do movimento da minha nave, vou por ali naqueles tufos e na mistura suave dos múltiplos verdes, dançando em cada linha como se escorregasse por ela, como se acelerasse nela, como se com ela fendesse e abrisse um espaço, e em cada volta vou na velocidade infinita que é realmente mais pequena «que a do mais pequeno intervalo imaginado», tal é a rapidez com que o olhar me leva e trás, nas incontáveis direcções que compõem toda a paisagem em movimento que atravesso.
 
A ida é já uma volta, não há dúvida, e quando fui já voltei, sempre que fluí por cada linha.

De repente, foi abolido o tempo.
 
Onde estou, que já não tenho tempo?
 
O tempo fez-se paisagem, a vida agora é um panorama.
 
Parece que posso visitar a minha morte com o meu velho corpo de criança que me diz sempre que a morte é impossível, que a morte é uma ilusão de óptica.
 
Mas porque é que o tempo é tão diferente do espaço? Porque é que Espinosa os aglomerou no mesmo conceito de «extensão»? No espaço «anda-se» para trás e para a frente, mas não no tempo.
 
O tempo é como uma muralha de pó que vai voando à medida que a percorremos. Parece uma franja, um vento ou um feitiço. Não andamos de um lado para o outro, a encontrar os mesmos lugares no tempo. As histórias, os mitos, as narrações e as memórias não nos convencem. Tudo isso são andaimes nas ruínas do tempo, apenas um pouco mais lentos que a sua curiosa pulverização. Nunca sabemos muito bem «por onde fomos», no tempo. Ele é ainda mais inapreensível do que uma paisagem sob a bruma, composta de bruxedos que a desfazem, mal se tira o pé.
 
Mas então como é que agora sou mais rápida que o tempo, nas linhas das colinas que dançam?
 
Dobrei o tempo ao contrário – oh! alegria! – mas terá sido na velocidade do esplendor das cores que de repente o tempo se aboliu?
 
Talvez por isso me aconteça aquela opressão apaixonada no peito e o ar que me entra súbito no coração, talvez por isso apareça assim na mente esta intuição ainda por explorar e que simplesmente afirma:
 
«É só isto. Eis tudo.»