Sobre escolher entre olhar ou virar a cara


Sonho CXXII


Anoitecia, quando vi passar uma menina de doze anos que parecia um zombie.

Tinha as órbitas ensanguentadas e os olhos azuis mal se viam, com um brilho alucinado e malsão, no fundo do rosto azulado.
 
A roupa caía-lhe em farrapos enlameados em torno do corpo esquelético, e a pele, cinzenta e esverdeada, repelia.
 
Parecia ter sido em tempos uma daquelas meninas louras muito branquinhas, com pele de porcelana, quase transparente, mas naquele momento causava-me uma impressão tal que preferi fingir não estar a vê-la.

Fiquei com um peso enorme dentro do peito, como se estivesse a cometer um crime. Mas entre a dor da má consciência, e a dor de olhar para essa menina, mesmo assim, venceu a segunda dor.
 
Preferi ignorá-la.
 
Passados uns tempos, porém, quando entrei no estacionamento para pegar no meu carro, vi-a de novo, vagueando ao acaso na sombra, por entre os outros carros.
 
Nesse momento, já não pude ignorá-la mais e gritei:
 
«Menina!... O que é que te aconteceu?»
 
Ela aproximou-se e disse:
 
«É que eu comecei a crescer, comecei a ficar grande demais, e os meus pais decidiram enterrar-me.»
 
«Enterraram-te?!... É por isso que estás assim?!...»  
 
«É que eu não estava a crescer da forma como eles queriam. Fiquei um ano enterrada, mas agora consegui sair.»
 
Eu pensava:
 
«Meu Deus!... Como é que se vive um ano enterrado?... Sem ar!... Sem comida!... Esta menina deve ser um prodígio.»
 
E perguntava:

«Como é que conseguiste viver?»
 
«Não sei.» - dizia ela.

«Anda!... Não podes ficar assim. Vou levar-te ao hospital.»

Deitava-a no banco de trás do carro, mas ela parecia um manequim, completamente hirta. Parecia que o seu corpo não tinha articulações.

Ela tinha muito frio e a única solução foi metê-la dentro das minhas roupas, colada ao meu corpo, apesar do medo e do nojo que isso me fazia.

Quando cheguei ao hospital, cortaram as minhas calças e a camisa para conseguirem tirá-la e eu lembrei-me de uma aula da Filomena Molder em que ela contou como é que as mulheres de uma certo tribo adoptavam uma criança, fazendo-a passar pelas suas saias, como se ela saísse dos seus corpos.
 
Com o meu calor, a menina tinha ficado com melhor aspecto. Nem as pálpebras estavam em sangue, nem a pele continuava azul.
 
Ainda não estava loura e transparente, mas já estava meio amarela.
 
Tinha os olhos fechados e inchados, como os de um recém-nascido, e eu pensava, olhando para o seu rosto adormecido:
 
«Descansa, menina, eu vou adoptar-te.»

E nada voltaria a ser como antes.