O inferno, a fúria e a ternura


Havia agora um novo tipo de arte, a que chamavam ainda escultura, mas seria realmente escultura? Não era bem uma performance e também não era propriamente uma instalação, embora se aproximasse mais desse segundo conceito do que do primeiro. Como fazer uma descrição satisfatória do que se tratava realmente? Andy, a autora famosíssima de tal novidade e que Anaïs D. conhecia desde a adolescência, tinha agora os cabelos frisados de um modo tão selvagem que parecia ter apanhado um choque eléctrico, mas isso dava-lhe uma graça especial e ia melhor com a sua personalidade alegre e irreverente. Os velhos cabelos ralos muito lisos e colados ao crânio, que lhe davam um ar infeliz e tristemente obediente, tinham passado à história e ainda bem, pensava Anaïs. A escultura era uma sala, uma sala enorme, toda a preto e branco, com volumes inesperados, paralelepípedos, cubos, pirâmides, formas como aquelas que apareciam no antigo jogo do Tetris, todas de tamanhos muito diferentes, sem qualquer escala entre si, e que criavam pequenos recantos por onde se andava, como as paredes de um labirinto. No chão, nas paredes e no tecto também havia quadrados a preto e branco sem escala e muito irregulares, também, e essa ausência de correlação entre os volumes, essa ausência de referência e de escala, digamos assim, fazia com que nos sentíssemos no meio do infinito, totalmente perdidos. O único consolo estava naqueles recantos criados pelos volumes que transmitiam uma pequena sensação de conforto, como de terra ou de casa. Porém, de repente e sem qualquer aviso todos esses volumes foram rebatidos no chão (ou absorvidos, não sabemos) e todos nós, os parcos visitantes, ficámos ali sobre aquele plano a preto e branco e onde os mesmos quadrados sem referência nem escala se replicavam no chão, nas paredes e no tecto. Não há como descrever a angústia indizível nem a vulnerabilidade absoluta que podíamos sentir. Não havia qualquer refúgio, qualquer luta a encetar, qualquer desafio com que entreter a dor e o tempo, nenhum recanto ou abrigo. Nada. Só aquela nudez absoluta diante do infinito. Anaïs D. saiu dali a correr, porque certas intensidades só podem sentir-se durante espaços muito curtos de tempo ou então com recurso aos chamados alteradores de consciência, não apenas o álcool e as drogas medicinais ou ilegais, mas muitos outros que como sabemos são inúmeros e tão engenhosos como fatais. Anaïs cruzou-se com P., que saía de uma casa de banho no museu, olhando para o telemóvel. Talvez porque tivesse sido objecto de uma experiência limite, Anaïs naquele momento olhou para P. e soube imediatamente que ele ia suicidar-se. Tinha de fazer qualquer coisa, tinha de fazer qualquer coisa com a maior urgência, mas nem sequer conhecia P. muito bem e não lhe ocorria nada que pudesse fazer. Sendo assim, e como não sabia o que fazer, Anaïs... pôs-se também a olhar para o telemóvel. As coisas que fazemos!... Tinha uma dor horrível no peito e na garganta, como se estivesse a ser estrangulada por um torniquete, e não conseguia pronunciar nem sequer uma palavra. Queria dizer-lhe: «Já que provámos o cálice, vamos bebê-lo até ao fim, certo?» - como Ivan, nos Irmãos Karamásov. Mas nada lhe saía. P. caminhava para longe de si, certamente em direcção ao seu absurdo e horrível destino, mais absurdo ainda que nascer e morrer sem saber para quê, pelo menos era o que lhe parecia naquele preciso momento. A isto talvez pudesse chamar-se um excesso de absurdo. Qualquer coisa ainda mais absurda que o absurdo. E, tal como o excesso de sofrimento, algo de gratuito e que é  preciso evitar a todo o custo, segundo uma ética intuitiva da preservação e da delicadeza. O que Anaïs sentia no meio daquela clarividência mal-vinda era uma impossibilidade absoluta, uma tortura certamente maior que uma passagem pelas chamas do inferno. Aliás, isso mesmo que ela sentia é que era o próprio inferno, esta dor e a impotência de saber que é necessário agir e não ter como. Então Anaïs foi tomada por uma fúria tão avassaladora que teve o desejo de desmantelar o universo inteiro e que não sobrasse nada, absolutamente nada, nem sequer ela própria. São assim radicalmente paradoxais as paixões humanas, que nos arrastam em menos de um segundo para os dois lados opostos de uma mesma realidade. Alguns segundos antes Anaïs queria apenas salvar P. e, uns meros segundos depois, dispunha-se a fazer aquilo mesmo que a horrorizava. Ainda bem que a fúria não tem um poder imediato em si mesma. De outro modo seria indubitável que o universo se extinguiria inumeráveis vezes, numa velocidade imprevisível. Mas Anaïs quase imediatamente se lembrou das flores, das ervas, das estrelas, das cores, dos animais, das crianças, dos velhos e de tantas coisas que lhe inspiravam uma ternura infinita, uma ternura ao mesmo tempo visceral e abstracta, física e transcendental, e ficou-se ali, olhando P. que partia de costas, imóvel e de braços caídos, sem mais nada que não fosse aquela perplexidade insuportável e suspensa do tempo como um balão de festa, girando na brisa.