Teorias, flores fúnebres, amores e desertos


Anaïs D. não conseguia deixar de circular no interior da sua cabeça, isto é, dos seus pensamentos, como um rato na roda do hamster ou como um animal desesperado num labirinto, mesmo sabendo que existem ideias que não devem ser pensadas repetidas vezes e que, ao nível do pensamento, certas repetições constituem um comportamento mórbido, tão perigoso que pode levar ao suicídio, quando menos se espera. Como pode alguém ser ao mesmo tempo tão lúcido e tão louco? Não sabia já Anaïs que, apesar dos pensamentos terem uma espontaneidade selvagem que é difícil conter e dominar, apesar do coração ser, tantas vezes, impossível de domar, mesmo assim os nossos comportamentos ainda pertencem àquele campo onde é possível exercer algum domínio, nem que seja com recurso ao auxílio dos nossos amigos ou de quem nos queira bem, quando as nossas forças se tornam demasiado fracas? Sempre há quem nos ajude a atar uma grilheta ao tornozelo, se nos sujeitarmos a isso, e Anaïs D. já estava naquele ponto em que até seria capaz, se lho pedissem, tal como o jogador no livro homónimo de Dostoievski, de descrever ponto por ponto cada elemento da sua patologia. Poderia até, conforme a disposição do momento, dar um cunho patético, deplorável ou humorístico a essa descrição, mas nem por isso perderia um grama da sua lucidez, se a lucidez se medisse em peso. "Podemos ser bastante irracionais e impossíveis de compreender." - pensava Anaïs. "Mas os monomaníacos são o sal do mundo." O orgulho, aliás, era um dos principais elementos da sua tragédia pessoal. Longamente e com distintos episódios coloridos teríamos de o descrever, se quiséssemos falar de Anaïs num romance. Tinha um carácter indomável e altivo, uma inteligência zombeteira e acutilante. Tirando certas coisas relacionadas com o esplendor, o sublime e deus, as sociedades humanas, desde a infância, tinham para si um aspecto trágico e risível, principalmente no cabotinismo e na forma séria e confrangedora como tantos se dedicavam aos seus papéis, nos quais pareciam acreditar com uma espécie de indiferença costumeira ou piedade fervorosa. Talvez fosse apenas uma farsa que frequentemente se adoptasse por comodismo e educação, e não por fraqueza da inteligência e do sentido crítico, mas Anaïs desde os nove anos que se surpreendia com a fome no mundo, como com as descrições da divina trindade e os projectos de crescimento económico constante que eram propostos em todos os quadrantes políticos. O mundo humano tinha para si uma natureza intolerável, impossível de habitar. Procurava, mas não encontrava nada. Nem nos livros, nem na televisão, nem nas conversas. Anaïs pertencia àquela espécie de pessoas que só podem sobreviver com a perseguição de um novo ideal, mas esse ideal têm de ser elas a criá-lo de raiz, a partir do nada. Já não servem as passagens dos monges pelo deserto, as cruzadas, a inspiração dos mártires, a revolução, nem sequer o activismo. Todas as instituições lhes inspiram repulsa. Está tudo gasto, mil vezes usado e corrompido já. E onde está agora essa grande força para lançar as primeiras pedras de uma nova fundação? Pelo menos o jogador de Dostoievski acreditava que era um elemento de resistência na máquina do capital, e o seu sarcasmo não deixava de ser uma arma contra a hipocrisia reinante. Uma peça disfuncional, digamos, um elemento produtor de caos. Útil, apesar de tudo, como elemento discordante num sistema monocromático e insensato, onde um extra de insensatez acrescenta um pouco de sal, ou talvez uma possibilidade de revolução. Quem sabe o parafuso torto possa fazer saltar a máquina? Mas Anaïs, a que género de revolução inconsciente pretenderia lançar-se? Resistiria ela a quê, com a sua loucura particular? Que género de margem pretenderia habitar? Seriam os da sua raça aqueles que, como Tarkovski, sabem que o amor é toda uma outra coisa absolutamente distinta do que em voga tantas vezes se pratica? Que o amor tem um lado estranho e aterrador, como o planeta Solaris? Talvez como uma natureza viva extraterrestre, que nos ama aos solavancos e com erros? Tarkovski descreve Solaris como um planeta vivo e inteligente, porventura mais inteligente e poderoso que a espécie humana, mas, ainda assim, com uma inteligência finita. Todos estão perplexos, diante de Solaris. Os elementos da tripulação enlouquecem e matam-se. Só sobra um. Ainda que a tripulação da estação espacial que o tinha por objecto de estudo se consuma elemento a elemento com o medo e a teoria de que as intenções do planeta são maléficas, Solaris, que parece decifrar no sono os sonhos dos tripulantes, também não parece querer mais do que materializar os seus desejos, quando transforma os sonhos em matéria viva. Da parte de Solaris, isto parece não ser mais do que um puro acto de amor, ou de simpatia, uma simpatia e amor não-humanos, digamos assim, com resultados tenebrosos. Como poderia Solaris perceber que o grande amor de Kelvin, a jovem Hari, cometera suicídio e que, ao trazê-la dos sonhos de Kelvin para a vida material, animava um morto-vivo, pior que um fantasma? Isto é comum também entre nós, que, com as melhores intenções, tantas vezes acabamos por fazer as piores coisas. Solaris, se era uma inteligência, pensaria? E se pensava, saberia alguma coisa? É possível que duas inteligências absolutamente diferentes se entendam uma à outra? Mas deixando Solaris de parte, uma coisa é certa, em relação a Anaïs. Como ela, todos estes amorosos têm em comum o facto de amarem as pessoas como seres em potência e não em acto. Há, por assim dizer, nesta espécie de amorosos, um engano constante e uma teimosia inquebrantável, com uma natureza muito séria e muito peculiar. É como se eles nunca tivessem os olhos de toda a gente, em relação ao objecto do seu amor, como se tivessem sido extirpados, em relação a isso, de toda a espécie de senso-comum, e de bom-senso também, é preciso reconhecê-lo. Mas os seus olhos não são os de um cego, muito pelo contrário. Inversamente, são mais potentes, mas, como em tudo na natureza, o que é demais, mesmo que seja melhor, tantas vezes ganha um aspecto monstruoso. Como se, para eles, o visível fosse, não a realidade material e factual, mas uma virtualidade candente que existe por dentro ou em potência em todos os seres, prestes a fazer-se e a acontecer, e nem por isso menos real. Por isso talvez tenha sido sempre tão atraente, do ponto de vista da criação literária, o périplo destes amorosos. Quantas páginas de filosofia ou de literatura não teríamos de escrever para chegar à descrição perfeita desta frequente e dramática experiência amorosa? Todos sabemos que a máquina da reprodução social, com as suas tristes e pobres repetições nuas, quase mecânicas, de geração em geração, constitui uma mordaça confortável e nem sempre obviamente infeliz, é um facto. Mas é terrível como se pode chegar a esse ponto de dominar a teoria e a descrição de um determinado assunto com a destreza de um malabarista e a acutilância de um cirurgião e, quanto à prática, simplesmente progredir no caos e no desastre, em direcção ao mais triste dos fins. Era este precisamente o caso de Anaïs D. Seria acurada, a sua visão cristalina? Teria o seu pensamento ido directo em direcção ao alvo? Suicidar-se-ia? Contra tudo o que sabia ser necessário fazer, dirigiu-se à nova casa de Wilson Florentine, onde se desenrolavam os preparativos do seu casamento. Tratava-se apenas de mais um elemento a acrescentar à sua tortura particular, talvez aquele que lhe desse por fim a coragem para se atirar de um precipício ou da ponte sobre o Tejo. Para quê? A casa era linda e com uma bela vista sobre o rio. Havia espaço e conforto para todos os filhos. Tudo resplandecia num doce ambiente de festa. A noiva recebeu Anaïs D. com as enigmáticas palavras, de significado bastante ambíguo: "Havemos de nos entender." "Jamais." - pensou Anaïs com os seus botões, não sem antes dar uma vista de olhos por toda a casa, para bem da longa vida do seu inferno pessoal. Wilson estava na cozinha, a preparar as entradas da mesa de festa, e Anaïs saiu sem querer olhar para ele. "Quem era?" - perguntou Wilson à sua noiva. Ela disse qualquer coisa e Wilson deu uma corrida em direcção às escadas, mas parou a meio, arrependido. Anaïs corria já com grande velocidade no final das escadas, perguntando-se: "Para quê?... Para quê?..." Porque, até chegar ao fim da sua narrativa, isto é, da sua vida, nem sequer o lúcido sabe porque age, e, esta é que é a verdade: talvez nunca ninguém venha a sabê-lo. Uma teoria de causa-efeito nunca deixará de ser a ilusão de um belo remate, como uma coroa de lindas flores fúnebres sobre a nossa campa, à laia de consolação.