Sobre a passagem entre o terror e a volúpia

Sonho CCIII



A Maria do Mar estava encerrada numa gruta sobre o mar, sem acesso por terra.

«Como teria chegado lá?»

Em breve o mar iria tomar aquilo tudo, encher toda a gruta.

Para escapar, a Maria do Mar precisava de saltar para uma rocha flutuante que se unia à ravina por um cabo, e, aproveitando a sua viagem aleatória, singrar com ela até um lugar seguro na costa.

A Maria do Mar precisou de uma coragem sobre-humana, ou sub-humana, para saltar para a rocha que tremia sob a ondulação forte.

Mas em pouco tempo descobriu que o cabo se tinha rompido.

Debaixo da água podiam ver-se de um modo intermitente as sombras de animais ameaçadores.

Tubarões, orcas, caranguejos, polvos e raias.

Também podiam ver-se bandos de caçadores submarinos que perseguiam estes animais.

Como não tinha escolha, a Maria do Mar juntou-se a eles, lançando-se à água, sem arma nem fato.

Com esse bando, chegou à praia.

Na praia, os homens despiram os fatos e exibiram nos braços erguidos os seus troféus semi-vivos.

Um caranguejo enorme agitava no ar freneticamente as suas pinças, nas mãos de um desses homens erguidas ao alto.

A Maria do Mar sentiu uma náusea avassaladora - e caiu de joelhos.

Segurou o vómito dentro da boca, e voltou a engoli-lo.

Não queria mostrar-se ainda mais vulnerável.

Quem disse que os animais não sabem quando vão morrer?

A Maria do Mar tremia tanto que caiu sobre as mãos - e ficou de gatas.

A Maria do Mar lembrou-se que Lord Chandos também vira, na chacina dos ratos envenenados, a mãe com as suas crias agonizantes puxadas para si e que não olhava para os impiedosos muros de pedra que a prendiam, mas para o ar vazio e, com um ranger de dentes, para o infinito.

Não era compaixão, dissera Lord Chandos. Era outra coisa.

A velocidade vertiginosa do infinito em acto. O infinito ao vivo.

De gatas, a Maria do Mar podia sentir o deserto tremendo da cúpula do céu, por cima da sua nuca.

Quando cairia a guilhotina dos deuses?

A Maria do Mar via os animais separados, arrancados ao seu paraíso natural.

A alegria vitoriosa dos homens.

Ao fundo, os troncos mudos das árvores.

Estava tudo mudo.

Como pôr-se de novo de pé?

De repente, as sensações da Maria do Mar saltaram para um outro plano.

A sua ideia de morrer encheu-se de uma estonteante volúpia, em que tudo girava. 

Como se o seu corpo pudesse participar de um novo regime amoroso, ao desvanecer-se sexualmente no resto da matéria.