Espinosa e a crueldade

Fragmento 86


Segundo Espinosa, Deus é uma substância eterna e infinita, com infinitos atributos, dos quais apenas conhecemos dois, extensão e pensamento. Traduzindo para uma linguagem mais actual, Deus será a matéria toda do universo, energia escura, energia branca, cosmos de infinitas dimensões, das quais experimentamos apenas duas, espaço-tempo e pensamento. 

Perguntas: os afectos são o quê, para o pensamento? Um afecto não é o resultado de uma força que se cruza entre o corpo e a mente, como uma ponte que os ata (como a duas margens aparalelas) num mesmo nó? A que dimensão pertencem os afectos, a que atributo, se eles parecem ser os passageiros nómadas (vagabundos sem terra) entre os dois únicos que conhecemos, isto é, entre o corpo (espaço-tempo) e a alma (pensamento-tempo)?

E se eu sou apenas um modo no espaço-tempo, versão humana de uma essência eterna, singular e infinita que é um elemento fixo e cristalino em Deus, mas feito carne no espaço, se eu sou um modo tal como uma flor, um leão, uma pedra, um gato ou uma mosca, será caso para dizer que, neste mundo, as essências se ocupam em devorar-se umas às outras, como diversas etapas do consumo de uma máquina infernal? O que pensar? Como pensar? 

Que valor positivo pode ter um afecto que me destrói, como por exemplo o sofrimento diante do absurdo e da crueldade e, em particular, diante do absurdo e da crueldade da devoração e do consumo mútuo entre os elementos vivos e mortos de toda a natureza em movimento?

A resposta de Espinosa, quando afirma e explica que as essências em Deus nunca se destroem como essências, mas apenas se consomem como modos, é o eixo da sua filosofia da alegria (mas, ainda assim, não sei se é suficiente).