Sobre uma costela bissexual

Sonho CXCIII



A Françoise, ao pendurar-se de uma varanda antiga em ferro forjado (já não sabemos porque motivo), caíra e, com o seu peso, arrastara parte da varanda consigo.

A Françoise, apenas com a ponta dos dedos, conseguira segurar-se.

Não seria por falta de força, mas porque o seu peso arrastava a frágil varanda, ainda presa à parede por finos cabos de ferro, que a Françoise sucumbiria.

Admirava-se com a força que tinha nas mãos, agora que se tratava de agarrar-se à vida.

Na hora de tocar os estudos de Chopin tinham-se revelado muito mais frágeis.

A Françoise gritou:

«Socorro!...»

Mas ninguém reparou.

A Françoise continuou a gritar, a intervalos regulares, mas com uma contenção e premeditação inacreditáveis.

Tinha medo que o esforço de gritar pusesse em causa o frágil equilíbrio da varanda e dos ferros que ainda a ligavam à parede.

Por fim, um dos transeuntes olhou para cima e reparou no que se passava, quase caindo ao chão com o susto.

Logo se mobilizou toda a gente.

Uns telefonavam, outros corriam, outros gritavam, outros ainda chamavam uns pelos outros.

Um homem enorme, um daqueles brutamontes que nos filmes de Chaplin fazem parecer o Chaplin ainda mais pequeno e efeminado, colocou-se debaixo da varanda, mas um pouco afastado.

- O que é que você está aí a fazer? - perguntou-lhe a Françoise.

- Estou à espera que você caia, para poder apanhá-la. - respondeu ele.

- Assim não consegue. - explicou-lhe a Françoise. - Está muito longe para conseguir apanhar-me.

- Não tem importância. - ripostou o gigante. - Quando você vier a cair eu dou um passo à frente e apanho-a.

Apesar da sua posição precária, a Françoise não conseguiu deixar de se sentir irritada com este excesso de confiança. 

Os ferros tinham cedido e a varanda já caíra um pouco mais, mas a Françoise, apesar de estar um pouco mais perto do chão, continuava bem segura pela ponta dos dedos.

Se caísse, não estava suficientemente em baixo. Ainda era a morte.

A Françoise viu com alegria uma jovem mulher que saía da porta do seu prédio carregando um grande colchão, em grande velocidade.

A mulher colocou aquele colchão debaixo dela e, quando a Françoise caiu, não se magoou.

A mulher era encantadora. Parecia uma bruxa ou uma feiticeira, com um casaco verde. Tinha qualquer coisa de uma antiga pintura fenícia, como uma dessas raparigas pintadas a negro e ocre num vaso elegante, milenar.

A Françoise sempre suspeitara que tinha uma costela bissexual, e agora confirmava-se a verdade.

Porque ela não queria apenas abraçar e agradecer àquela mulher que a salvara.

Queria beijá-la na boca e casar-se com ela, até à morte.