Sobre o sentimento de inferioridade

Sonho CXXV


A Françoise estava na sua antiga faculdade, onde em tempos estudara, e à sua frente estava uma rapariga fascinante, que todos pareciam admirar.

O seu corpo era tão brilhante e com um aspecto tão escorregadio, por causa das roupas sofisticadas muito coladas à pele, que ela parecia um peixe.

Os cabelos negros muito lisos e brilhantes caiam-lhe sobre os ombros, cintilantes, e toda ela fazia lembrar um tubarão, tal era o seu poder.

«Que ridícula que és!...» Disse Françoise a si própria, ao lembrar-se das suas fantasias de grandeza. «Como poderias equiparar-te a um tal animal?»

Sentiu-se tão vexada ao apercerber-se da sua falta de sentido da realidade que procurou escapulir-se discretamente.

No entanto, parecia que o planeta era aquele mesmo planeta do futuro que se repetia em tantos dos seus sonhos, esse planeta em que todas as casas são subterrâneas e em que parece viver-se em estado de guerra ou de catástrofe eminente.

Françoise M. via ao longe Heinrich Hart, por quem estivera tão apaixonada, mas era fácil aperceber-se de que ele só tinha olhos para as poderosas raparigas.

É que a primeira rapariga, escorregadia e brilhante como um peixe, pertencia a um grupo de jovens que eram todas parecidas entre si, como uma matilha de lobos ou um batalhão de amazonas.

E à pobre Françoise inspiravam-lhe todas medo, pela sua força evidente.

De súbito, porém, a Françoise viu em jorros o sangue correr pelo nariz de uma destas raparigas e, logo de seguida, viu também o sangue a correr em jorros pelo rosto daquele que ela tinha amado.

Instintivamente, levou a mão direita ao seu nariz, para ver se o sangue também corria, e pensou: «É uma doença... Se calhar já estamos todos contaminados...»

Reparou então que estava espalhado pelo chão muito escuro, nos cantos, um líquido verde que alastrava como uma mancha de petróleo no mar.

«É aquilo... Temos de fugir antes que seja tarde!..»
 
Françoise olhou para a sua mão direita que estava cheia de sangue e preparou-se mentalmente para morrer.
 
«A vida é só isto.»

Os elevadores que a poderiam levar à superfície estavam já atulhados de gente que se esmagava em pânico e por isso teria de utilizar um elevador daqueles que ninguém usava porque serviam apenas para o lixo e para as mercadorias.


Quem a compreendeu de imediato foi um outro homem que era afinal o mais perspicaz desse grupo.

 
«Precisamos deles como quem viaja de carro e precisa de encher o depósito, mas os juízos morais são das coisas mais voláteis deste mundo.»

 
Era o que pensava a Françoise enquanto se metia dentro de um contentor em conjunto com esse que afinal era muito diferente do que julgara.

 


Nuno Maria 2015