Pluma

Fragmento 179
 
 
 
- Queria uma pluma, por favor.
 
- De asa vazia?
 
Foi este o fragmento de um diálogo captado de relance que fez com que a minha imaginação levantasse voo. Uma pluma de asa vazia... Seria uma nova bebida alcoólica? Mas que fina competência, que arte particular se ocultaria nessa poética expressão, com leveza tão afim de pluma - a «asa vazia»? Seria a asa de uma caneca ou de um moderno e elegante copo alto de vidro para uma nova e fulgurante bebida com um efeito realmente transcendente? Um novo motor para a notável explosão infinita que faz cair em cascata as sensações como peças de dominó ou baralhos de universos no lugar de cartas? E porquê «vazia»? Qual a diferença, se fosse «cheia»? Na minha imaginação podia ver como se numa tela uma pluma branca e uma asa ainda mais branca, asa sem corpo, sem pássaro e sem sentido e que mesmo assim não saberia como seria «vazia». Era toda uma via láctea que se estendia diante do meu desejo, por causa dessa dificuldade de imaginar a «asa vazia». Uma dificuldade acrobática que me provocava uma velocidade, um entusiasmo e uma excitação semelhantes aos de uma leitura difícil que me prometesse alguma espécie de esclarecimento. Foi por isso que instintivamente e quase sem dar conta segui o interlocutor daquele diálogo, para perceber afinal que «pluma» era uma bilha de gás (aliás, cor de laranja) e que «asa vazia» fora uma corruptela que a minha imaginação compusera a partir da pergunta mais prosaica da menina e que era simplesmente: «Traz a vazia?»
 
Mas logo o meu pensamento descobriu uma semelhança humorística entre este acontecimento e o de encontrar no centro de Cascais uma estátua que me parecia de Mao e que afinal era de Dom Carlos I (porque afinal não é assim tão pouco frequente que diferentes coincidências conspirem com uma outra arte que é a de nos rirmos de nós próprios).
 
Parece que não existem no trivial da vida humana bem organizada e estratificada os mesmos abismos e intervalos, o mesmo non-sense e a mesma intensidade que a toda a hora entram nos nossos sonhos, na nossa infância e nos nossos poemas, livros ou paixões. Nem existe a estátua de um comunista chinês no centro de Cascais, nem ninguém pede uma pluma de asa vazia num posto da Galp.
 
Mas parece que a nossa vida quotidiana será sempre invadida do modo mais imprevisto por estes entusiasmos inefáveis que se dirigem aos mundos que só a nossa imaginação pode compor, planos desconhecidos ou grãos resistentes que sobram de uma outra coisa sem nome e que nos habita sempre paralelamente, como um inquilino fantasma.