Tchaikovsky - Dança da morte do cisne

Fragmento 114
 
 
 
Os bailarinos usam as pernas como asas - e voam com elas.
 
Fazem trilos com os pés nas leves piruetas com que lançam o corpo inteiro inclinado no ar, num excesso de alegria.
 
Quando chega a dança da morte do cisne, a dança dolorosa da bailarina-cisne, é todo o seu corpo que é realmente cisne - e vê-se na transparência total aquele misto de dor, majestade e solidão que passa pelo corpo do cisne, acompanhado pelas tremuras involuntárias do animal.
 
Correm-me as lágrimas pela cara, perante a dança do estranho pássaro, mistura altiva de ave com nuvem. 
 
Há um pássaro que aparece de súbito no corpo da mulher como que em clarões ou flashes ou labaredas nos braços que ora desenham o corpo oblongo, ora as asas, ora o pescoço estendido e impossível.
 
Bailarina tão fina, como podes ser tão frágil e tão forte?
 
Os teus gestos já não são de gente, o teu corpo já não é de gente.
 
Toda tu passaste para o lado do animal.
 
São as inflexões e os tremores dos braços que me falam de uma outra paixão e de um outro amor que já não é o dos homens.
 
Paixão de voar. Paixão de existir. Amor por simplesmente ser.
 
Solidão infinita de todos os animais que existem sós e que não pretendem compreender, muito menos compreender-se. 
 
Se o bailarino, apaixonado e um pouco tonto, te persegue fascinado e sem nada entender, que importa afinal?
 
São as mãos torcidas no fim das asas que me falam de voar sem ter mãos.
 
Asas que já nunca foram mãos nos braços da bailarina-cisne e que se agitam numa emoção sem palavras, afectos dos que nunca falaram, estes animais que se levantam, que correm, que voam e que se suspendem nos ares, como que arrastados por vagas...
 
Mesmo quando o gesto se torna um pouco humano, um pouco mais legível, vem a seguir uma quebra, um desfalecimento nas costas, uma embriaguez que nos leva para outras franjas, para outras inconsciências.
 
Núpcias contra-natura!... Ó Príncipe perdido!... Como pode um cisne conter-se nos teus braços?...
 
Ela dobra-se e escapa-se como uma onda, como um corpo fluído.
 
Quando chega a dança alegre do quarteto, a dança leve e ritmada do «pas de quatre» das quatro bailarinas-cisne, é o fru-fru das saias que já são plumagem, por entre os braços cruzados e as mãos sempre dadas, formando «vês», no corpo múltiplo que se extrai do bando das raparigas, com um excesso de riso e leveza, é o absurdo fru-fru das saias que se agitam entre as pernas-asas das dançarinas virtuosas que me faz rir e chorar, sem saber porquê.
 
E é caso para perguntar: alguém aqui pode ser convertido a um sentimento como a pena, como a saudade?
 
Será que a bailarina-cisne tem saudades de ser mulher, ou que ela tem pena de não ser princesa?
 
A saudade e a pena dos homens chega sempre depois, depois das despedidas, depois das partidas, depois dos lutos e depois das perdas.
 
Mas este afecto de dor já vem de muito antes, de um outro tempo, como de um outro plano ou de uma impossibilidade absoluta de falar, impotência rigorosa de que apenas alguns de nós conhecem a violência.
 

Anna Pavlova (1905)