Sobre um elevador

Sonho CXLIX
 
 
Estava morto por chegar a casa.
 
Ao abrir a porta do elevador, reparei que entrava no átrio do prédio uma velha senhora caminhando com alguma dificuldade apoiada no braço da filha, que também já não era jovem.
 
Respirei fundo e dispus-me a esperar pelas duas senhoras, dizendo de mim para mim, ao sentir-me tão subliminarmente contrariado:
 
«Como a nossa bondade é pequena!...»
 
Quando as duas senhoras entraram no elevador, agradecendo muito, perguntei-lhes para que andar é que iam.
 
Foi então que, sem querer, toquei num botão que tinha um símbolo ilegível, ao invés de tocar no número que me tinham dito.
 
Só pensava nas inúmeras coisas que tinha para fazer, quando chegasse a casa.
 
Mas pedi imensa desculpa ao dar pelo erro, enquanto pensava, para os meus botões:
 
«Quanto mais depressa, mais devagar.»
 
Contudo, o elevador não subiu para nenhum andar, em consequência do meu erro.
 
O elevador disparou como uma carruagem de montanha russa a deslizar sobre dois carris que permitiam uma vista panorâmica sobre a cidade de Lisboa e os arredores de Cascais.
 
«Mas porque é que os nossos elevadores haveriam de ter esta vertente turística?...»
 
Pensava eu - concluindo que afinal devia ser por isso que tínhamos pago tanto por eles.
 
«Peço imensa desculpa...» - Dizia eu às duas senhoras. - «Faço-vos perder tempo... e apanhar sol... as minhas sinceras desculpas... se eu soubesse...»
 
Elas diziam que não, que não me preocupasse tanto e não me desculpasse - porque a toda a gente acontece errar, ora essa!..., e que o passeio era até muitíssimo agradável e além disso qualquer pessoa poderia ter um descuido ao carregar num número tão elevado de botões...
 
Agora tínhamos de ir até ao Cabo da Roca, passando pela Duna Crismina e pela Malveira da Serra.
 
O nosso elevador era um espécie de móvel multifunções e  por vezes íamos como que numa pequena carruagem sobre carris, enquanto noutras íamos pelo ar pendurados num cabo como nos teleféricos.
 
Eu não via já como chegar a casa a tempo de fazer tudo o que ainda me faltava fazer.
 
Para cúmulo do desastre, às duas por três estávamos a atravessar a praia do Guincho mas, como os carris estavam sobre as águas e a maré subia velozmente com o mar agreste e revolto, tivemos de nos agarrar com força à base dos bancos para não sermos arrastados pelas ondas.
 
«Que irresponsáveis, os promotores deste passeio turístico!...» - Pensava eu, guardando para mim estas considerações de modo a não apoquentar ainda mais as duas pobres senhoras.
 
Nesse momento já não fazia sentido pedir qualquer espécie de desculpas.
 
Com o impacto de uma grande onda a minha mochila azul voou e fiquei a vê-la flutuar na espuma do mar revolto, enquanto ponderava qual a melhor de duas más opções -
ou lançar-me às águas, ou aguardar em longas filas de espera de modo a substituir o cartão de cidadão, a carta de condução, o livrete do carro, os cartões de crédito, etc.

Essa mochila tinha escrito em letras pretas: «À procura da liberdade.»
 
Acabei por me lançar à água e, com muito esforço e risco da própria vida, reaver a mochila azul.
 
Já não esperava animadamente chegar a casa, quanto mais realizar as tarefas planeadas.
 
 

Nuno Maria