Órfãos do infinito

Fragmento 17


Não pertenço a nenhum grupo, a nenhuma religião.
 
Tenho pena.
 
Poderia talvez amar um ritual como uma planta que, se fosse capaz de amar, amaria a sua raiz.
 
Mas não pertenço a nada. Estou sempre de passagem.
 
Acredito porém que preciso de criar qualquer coisa, em vez de religião, de outra forma morrerei como todos os que morrem aos poucos.
 
Preciso de uma nova visão, preciso de um novo pão.
 
Não desejo que a morte seja apenas uma comédia com pormenores grotescos, hilariantes e trágicos.
 
Sem Deus, ainda que vivamos em abundância, ficamos sempre muito magros ou muito gordos, passamos fome ou comemos até à náusea, até nos envenenarmos e deformarmos a nós próprios, como que inchados por maus tratos.
 
Demasiado pobres, viciados em miséria, ou demasiado ricos, como ladrões inconscientes, satisfeitos e vaidosos, trabalhamos muito até já não pensar, como escravos púdicos e embriagados desse prazer de cumprir um dever.
 
Cada um, ébrio de si, pode então escolher o íntimo prazer com que esquecer e morrer.
 
Baralhos de cartas, substâncias que se engolem, bebem, injectam ou inalam, sexo em série, objectos de luxo, paixões amorosas, carreiras ou famílias instaladas, e até o que parece bom não deixa de ser um vício, diminutivo e por fim doloroso e fatal como uma doença, enquanto andamos desta maneira desvairados, perdidos de deus - os órfãos do infinito.