Sobre a rendição como estratégia de guerra

Sonho CXLVII
 

F. de Riverday via como se fosse num álbum de fotografias animadas os seus pais quando eram ainda bastante jovens.
 
Tratava-se de uma reportagem sobre a realização de um filme a preto e branco - um projecto que eles e os seus amigos tinham decidido empreender em conjunto, para se divertirem, numa floresta de eucaliptos.
 
Com os seus fatos de excelente qualidade e bom corte, as motas de alta cilindrada e os carros descapotáveis, mostravam-se, quer nas maneiras, quer nos comentários e ideias, caprichosos, inconscientes, vaidosos e incrivelmente fúteis.
 
Folheando o álbum, F. de Riverday reflectia no facto de como, no espaço de apenas uma geração, a perspectiva de vida poder transformar-se de um modo tão radical e abrupto.
 
O mais grave porém era que ela às duas por três também estava metida naquele filme.
 
Levava consigo um casal de violinistas que eram pais de uma menina chinesa de seis anos, muito inteligente, mas o filme começava a correr muito mal, pois havia um elemento que cortava eucaliptos na direcção errada.
 
Os eucaliptos caíam com estrondo em cima dos vários participantes que iam morrendo de forma instantânea, apesar de correrem em todas as direcções.
 
A Riverday também corria e, mesmo tomando a morte como certa, conseguiu escapar-se por entre os buracos de uma rede que entretanto lançavam para cobrir e apanhar os cadáveres.
 
Mal se escapou, correu ao encontro da menina chinesa, pois sentia-se responsável pelo que acontecera aos seus pais.
 
Quando chegou perto da menina, antes sequer de abrir a boca, ela disse:
 
«Eu já sabia.»
 
«Já sabias o quê?»
 
«Já sabia tudo o que veio a acontecer.»
 
Riverday sentou-a no seu colo quando viu aproximar-se uma velha de nariz adunco e expressão cruel.
 
O rosto da menina ficou branco e sombrio e o seu corpo crispou-se como se fosse inteiramente de pedra.
 
«O que se passa?» - perguntou F. de Riverday.
 
F. de Riverday reparou que a velha se imobilizava como um manequim e que o seu corpo ficava vazio como um invólucro.
 
«O que se passa aqui?» - Gritou a Riverday, desesperada.
 
A menina estava totalmente hirta e deitou-se na cama a olhar para o tecto, com as mãos sobre o estômago.
 
Apesar de nunca em toda a sua vida ter ponderado semelhante hipótese, a Riverday percebeu que a velha tinha passado para o corpo da menina.
 
«O que está a fazer, sua velha bruxa?»

A velha não queria mais habitar o seu corpo inchado, dorido e esclerosado.
Preferia deitar-se na cama com o corpo da menina.
 
«Mas não corres, não saltas, não brincas, não danças, não fazes castelinhos com a água e a areia?»
 
Não. A velha tinha uma alma de velha e, por isso, não se interessava por fazer nada.
 
Riverday chorou durante dez horas aos pés da cama, mas a velha tinha um coração de pedra.
 
Por fim, a velha abandonou o corpo da menina, pois já era noite e precisava de regressar a casa, e F. de Riverday decidiu matá-la.
 
Pegou numa grande faca e dirigiu-se para casa da velha com a intenção de lhe cortar a cabeça.
 
Sentia-se tomada de uma tal fúria que estava capaz de lhe cortar a cabeça de um só golpe, mas, quando chegou à frente do alto portão da casa, a velha e a sua neta deitaram-lhe um olhar através das grades que a paralisou como um feitiço.
 
F. de Riverday ficou de braços no ar, imóvel, a vê-las desaparecer no interior da casa, até que se quebrou o feitiço.
 
«Não os vences com as armas comuns - vence-los no próprio terreno.»
 
E foi deste modo que F. de Riverday, naturalmente avessa a todas as formas de magia, partiu em busca de um exorcista.
 
 
 
Nuno Maria (2015), «When things go out of hand»
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