Sobre as coisas que nunca mais se dizem

Sonho CCVI



A tia Milú tinha preparado um magnífico almoço de Natal.

Havia puré de batata verdadeiro, lombo de porco com laranja e puré de maçã acabado de fazer, com pó de canela servido à parte, em tacinhas pequenas, enfeitadas com colheres de prata. A lista dos doces era infindável. A massa dos bolos fatiados e dispostos em pratos redondos tinha um aspecto quente e fofo, muito fofo. Bolo de maçã, bolo de limão com glacé, mousse de manga, crumble e gelado de nata feito em casa, decorado com folhas de hortelã.

A Françoise sentia-se envergonhada por não ter trazido nada, nem sequer o seu célebre bolo de amêndoa com creme de manteiga, tão apreciado. Mas ficava contente por haver tantos doces em cima da mesa. Ninguém sentiria falta de nada.

No meio de tanta gente que ali estava, Heinrich Hart disse, com uma expressão de profunda reprovação:

- Françoise, aqueles «tês»...

Porque o desenho dos «tês» da sua caligrafia, nas cartas que lhe enviara, pelos vistos tinha tido um efeito semelhante aos de Gilberte na carta que enviara a Marcel, no romance de Proust.

Gilberte prolongava de tal forma os traços que atravessam as hastes dos «tês» que essas linhas se confundiam com as letras da linha anterior, o que fizera com que Proust lesse «Albertine», em vez de «Gilberte», e julgasse que a sua antiga amante estava viva, em vez de morta.

- Que teria acontecido?... - pensava Françoise, lembrando-se das suas cartas.

Heinrich Hart parecia-lhe agora um pouco mais atarracado, diferente de quando lhe lembrava uma pantera, com o seu corpo fino e elástico.

No meio de tanta gente, porém, era impossível enunciar uma pergunta.

Há coisas assim, que nunca mais se dizem.