Sobre o instinto de conservação

Sonho CLXXXVIII



Vivíamos em pleno caos, pois todo o tecido social se tinha vindo a desfazer, ao longo dos últimos anos.

Os delitos eram tantos que não havia possibilidade de os contar, muito menos de os punir.

Muitas pequenas máfias tinham assumido o controlo das povoações e das cidades que passaram a estar divididas em bairros, conforme os chefes que as dominavam.

A condição das mulheres tinha regredido para o estado de muitos séculos atrás - e a maioria dos homens carregava uma arma.

Mas a Françoise continuava a comportar-se de um modo muito rebelde.

Certa vez estava parada num sinal vermelho, quando verificou que estavam a desmontar-lhe o vidro do carro, para o levar.

A Françoise não fez mais nada.

Tirou o vidro das mãos do homem e arrancou com o acelerador no fundo.

Esta atitude colocou-a na pior das situações.

«DÍVIDA DE MORTE.» - era como lhe chamavam.

A partir de agora, a sua rebeldia só poderia ser paga com o próprio sangue.

A Françoise não se tinha lembrado das novas condições em que se vivia.

De novo parada num sinal vermelho, viu entrar pelo vidro o cano de uma arma que foi apontada à sua testa.

De um modo bastante patético, a Françoise estendeu o vidro ao seu carrasco, como quem diz: «Leve-o.»

Ele riu-se, ufano com o poder de apontar à cabeça de uma mulher desarmada.

A Françoise ficou branca e sentiu uma fúria, uma tal fúria que lhe eriçava os cabelos e lhe dava essa força que é própria dos loucos e dos destemidos.

Agarrou no cano da arma com a mão e, de um só golpe, disparou-a contra o rosto do seu carrasco e, logo de seguida, contra o peito.

A Françoise não tinha apontado às pernas, nem aos braços.

Disparara sem piedade, sem remorso.

«Entre tu e eu, eu.»

Um animal fortíssimo e selvagem trepara por ela adentro e tomara conta de todo o seu corpo, de toda a sua alma.

Nessa velha equação do altruísmo sobrara apenas um único elemento - o instinto de conservação.