A arte passa, a natureza fica.

Fragmento 189




«Andrei Rublev», o filme de Tarkovski sobre o pintor medieval homónimo passa do preto e branco à cor quando Andrei quebra o longo voto de silêncio e decide voltar a pintar.
 
Depois do lançamento de um balão que traz à morte o voador louco; depois da electricidade primitiva com que o jogral imprime ritmo ao discurso que o condena a que lhe seja cortada metade da língua; depois da violência extrema da invasão tártara; depois da lenta e espantosa fabricação do grande sino; de súbito, no grande ecrã - a orgia da cor.
 
São os grandes planos da pintura de Andrei Rublev. O ouro ardente; os rostos compenetrados dos santos, sérios, lúcidos, mas sem doçura; o azul, o rosa, o branco, o vermelho; a intensidade quase insuportável dos traços mínimos de amarelo, branco, rosa, e que em corrente formam centelhas; os entrecortamentos, como soluços; as dobras quase cubistas das vestes hieráticas das figuras e, na velocidade da câmara que capta a dança abstracta do infinitesimal das cores, os movimentos do pincel nas texturas que são só pintura, pintura pura sem figura nem tema e onde o que emerge não tem nome porque congrega toda a superação humana, toda a passagem que se faz da violência à esperança, da miséria à glória, da inutilidade à acção e do absurdo à fé.
 
Como dizê-lo?
 
Porque depois do penúltimo plano em que a humidade derrete a pintura do rosto de Cristo, o que fica são os cavalos no prado a pastar, debaixo de uma chuva suave e entre uma neblina que respira e que partilha algo afim de uma apaziguação, por causa disto fomos forçados a pensar: «Ah!... A arte passa, e a natureza fica.»
 
E no entanto foi na dança abstracta que a velocidade da câmara compôs sobre as tintas sem figura que algo ainda mais extremo e pungente nos foi dado.