Maria do Mar II

Fragmento 172


Notas para a Maria do Mar nas margens de um capítulo da Crítica da Razão Pura de Kant
 
(«Primeira Secção - Das ideias em geral»)
 
 
Eis o que está anotado, para além dos sublinhados, das chavetas, das pequenas cruzes que marcam a intensidade de uma identificação ou dos pontos de exclamação que assinalam a alegria dos encontros: 

 
 
Finalmente a linguagem!
 
MENTE           PALAVRA
INFINITO              FINITO
 
Uma poética - Literalidade -
uma defesa da literalidade é uma defesa do significado,
da verdade e do valor intrínseco das palavras.
Maria do Mar.

 
 
«Apesar da grande riqueza das nossas línguas, muitas vezes o pensador vê-se em apuros para encontrar a expressão rigorosa adequada ao seu conceito, sem a qual não pode fazer-se compreender bem, nem pelos outros, nem por si mesmo.»

Estão aqui duas pistas para o mundo de Kant, superficialmente contraditórias. Em primeiro lugar, há uma pista que nos remete para o pressuposto de que o pensamento é uma actividade separada da gramática, e, em segundo lugar, há uma outra pista que nos diz que, se nos valemos de «expressões frouxas» ou «aproximadas», isto é, «não-rigorosas», ficaremos por ser compreendidos... até por nós mesmos...

Neste último ponto não andamos longe das novas terapias que colocam na higiene crítica da expressão verbal do pensamento o foco de um treino para a sanidade mental. Quase todos sabemos como a adopção expressiva de uma ideia incauta nos pode minar, ainda que de um modo impercetível, mas inexorável. Uma opinião rápida e demasiado intensa pode ter o mesmo efeito sobre um espírito pouco acautelado que um vírus sobre um sistema imunitário recentemente debilitado por uma emoção forte.

Mas este não é o ponto principal de Kant, obviamente. O seu delicioso «pensador em apuros» sabe muito bem que a um conceito não corresponde propriamente uma palavra. Como é que se lê Kant, ou qualquer outro grande filósofo?

Pega-se num caderninho de significados em branco, daqueles que usamos para memorizar vocabulário quando estamos a aprender uma nova língua, e vamos registando, termo a termo, expressão a expressão, conceito a conceito, o sentido que o autor lhes dá, até atingirmos qualquer coisa como uma «visão panorâmica» desse sentido. Aliás, é a esta prática muito específica que corresponde o significado literal da expressão de Deleuze, «qualquer filósofo fala numa língua estrangeira, ainda que dentro da sua própria língua». E é exactamente assim.

Naturalmente, Kant prossegue, com o seu moralismo peculiar:

«Forjar palavras novas é pretender legislar sobre as línguas, o que raramente é bem sucedido e, antes de recorrermos a esse meio extremo, é aconselhável tentar encontrar esse conceito numa língua morta e erudita e, simultameamente, a sua expressão adequada; e, se o antigo uso de tal expressão se tornou incerto, por descuido dos seus autores, é preferível consolidar o significado que lhe era próprio (embora persista a dúvida sobre o sentido que, em rigor, se lhe atribuía), a prejudicar o nosso propósito, tornando-nos incompreensíveis.»

O objectivo de Kant, neste capítulo, é extirpar a palavra «ideia» de uma miríade de sentidos em que é usada na linguagem comum, e mesmo filosófica. É sempre de desconfiar quando Kant aplica o epíteto de «sublime» a um outro filósofo. Ele pega nas ideias de Platão (com alguma ironia e humor, portanto), para começar a desenhar o seu conceito próprio de «ideia», pedindo aos leitores «que tomem sob a sua protecção a palavra ideia no seu sentido primitivo, para que doravante não se confunda com as outras palavras pelas quais é hábito designar toda a espécie de representações, sem nenhuma ordem precisa e com grande prejuízo da ciência.»

Ora, o que interessa a Maria do Mar, e o que tornou a passagem tão empolgante para ela, apesar de partilhar, com Kant, a mesma busca de exactidão, quer dizer, aquilo que fez vibrar uma corda muito forte no interior da Maria do Mar ao ponto de registar o seu nome nas margens de semelhante capítulo foi precisamente a via oposta à de Kant, e logo de início renegada, isto é, «o meio extremo» de «forjar palavras» - a invenção de palavras.

O problema é quase o mesmo, este que se coloca na linguagem ou na fala ou na articulação de um filósofo ou de um poeta - é um problema de rigor. Mas para o poeta há não só o rigor que se exige a esse movimento alucinado, demasiado rápido, das corridas no deserto ou das paragens e das ante-esperas sem nome no vazio - o pensamento - como há uma outra exactidão que se busca até à exaustão e que consiste em fazer das frases uma outra pele, um outro ajustamento para os corpos das sensações únicas, infinitas, que moldam o tempo das almas. É preciso para uma sensação, sim, uma palavra exacta que não seja deturpada e é preciso que ela tenha um ritmo exacto, uma cor exacta, um timbre exacto, uma melodia exacta, uma musicalidade rigorosa. Essas palavras e frases têm de ser ao mesmo tempo corpo e alma, isto é, rigorosas em duas direcções simultaneamente.

E de facto «meio extremo» foi a expressão exacta de Kant que incendiou aqui a Maria do Mar.