As melhores camas de sempre, tanto para casais, como para solteiros

Sonho CCCXVI

Tinham sido inventadas as melhores camas de sempre, tanto para casais, como para solteiros. Estava precisamente a dormir numa delas. Faziam lembrar os "pulmões de ferro", inventados no início do século XX por Louis Agassiz Shaw Jr. e onde algumas pessoas passaram uma vida, mas que entretanto ficaram obsoletos com a invenção da vacina contra a poliomielite. Como seria bastante previsível, esta semelhança não era nada agradável, pelo contrário. Também faziam lembrar um caixão, ou um sarcófago, mas, na verdade, o mais extraordinário era que estas novas camas eram incrivelmente confortáveis. Estavam perfeitamente climatizadas por um "leitor do corpo" que se adaptava às singularidades mais subtis do seu ocupante. A cama tinha, não apenas um "leitor de corpo", mas também um "leitor da mente", que podia dialogar com os sonhos de cada pernoitante. Além disso, o facto de ser uma cama cilíndrica permitia que ela própria girasse sem que tivéssemos de dar voltas na cama. Não me parecia coisa muito simpática para os casais, serem assim rebolados em conjunto. Mas, para mim e para a minha gatinha, estava perfeito. Este cilindro também permitia que as pessoas pudessem dormir em qualquer lugar, mesmo que fossem sem-abrigo, tinham sempre a possibilidade de uma noite segura e tranquila. Os edredons eram óptimos: lavadíssimos, brancos, perfumados, leves e voluptuosos. A insonorização era total. Se alguém estivesse a fugir de bombardeamentos e passasse a noite em túneis de metro, os cilindros também eram úteis, em particular por causa dos seus duplos leitores da mente e do corpo, que podiam assegurar música, imagens e estratégias calmantes. Como todas as invenções que primam pelo engenho e sofisticação, porém, as suas falhas eram inúmeras e, na verdade, aos milhares. Precisávamos de estar permanentemente atentos e de ser engenhosos em soluções. Por exemplo, no meu caso, acontecia que estava perfeitamente vigilante, mas a máquina estava convicta de que eu dormia e que a minha vigilância era, na verdade, um sonho. "Estás avariado." - dizia eu, ao leitor da mente - "Estou acordada. Não consegues perceber isso?" Mas ele respondia: "Não estou avariado. Tu é que estás a sonhar que ainda não adormeceste." Com esta discussão, era impossível dormir. Não chegávamos a lado nenhum, era como se estivéssemos entalados num beco sem saída. Na verdade, era de uma comicidade inquietante, estar ali com uma insónia no meio dos voluptuosos e alvíssimos edredons. Uma coisa parecida com uma espécie de quizz que vi de raspão quando abri o motor de pesquisa da google: "Eis cinco perguntas que lhe vão permitir descobrir o grau da sua inteligência. Se responder sim a todas elas, vai perceber que é muito mais inteligente do que pensava."  

imagem construída com a ajuda da AI


Livro infinito

Sonho CCCXV

Este sonho era um debate de vozes interiores. Este sonho era apenas escrita, nunca tive um sonho assim. Não havia gente nem drama no meu sonho, mas o assunto era trágico. Eu apenas sonhava que pensava. Pensava em como as ideias e as crenças definem os seres humanos, isto é, a própria essência de se ser humano. "Crescei e multiplicai-vos." Disseram um dia os judeus, dando voz indirecta ao esplendor que se capta na infância. E o que se fez disso? O que se fez disso cobre todo o espectro que vai do paraíso ao inferno. A psicologia fala de desejo, de vários tipos de desejo (tanto para escrever sobre o desejo). E o que se faz disso? Espinosa, o mais lúcido de todos, falou de connatus - a alegria de perseverar na própria essência, de estar ligado a sim mesmo, ao mais íntimo de si mesmo. Mas como emergem as essências singulares, no meio de tanto ruído, ameaça, medo, dependência, caos e pressão social? A liberdade absoluta é apenas a das nossas ideias, mas mesmo essas ideias estão reféns, desde o início, de mil armadilhas, auto-ilusões, mentiras. Há quem nasça logo sob o selo da própria morte. A consciência aguda da morte traz de chofre o sem-sentido da vida. Para quê? Viver uma vida sem sentido, para quê? Enfrentar o caos, a violência, o sofrimento e todas as inumeráveis ameças da vida infernal e turbulenta, para quê? A esses, se querem ficar de pé, cabe inventar o seu "para quê". Descobrir a sua humanidade, ponto por ponto, a partir do zero. Esse zero não é um entretenimento ou uma manobra de diversão para passar o tempo. Não é uma morte adiada, na qual se procura acima de tudo algum conforto, segurança, divertimento e ócio, ou o esquecimento dessa decadência aguda e do golpe fatal, incontornável - por exemplo, alguma forma de anestesia, nas quais somos de uma criatividade pródiga. Chamo-lhe Deus, não encontro outro nome, mas devia encontrar. Vida. Força maior. Universo. Consciência plural, inimaginável. Penso no Solaris de Tarkovski. O planeta telepático, que os cientistas queriam destruir. Uma outra forma alienígena de consciência, muito superior à nossa. Quantas formas de consciência no infinito? Que ideia poderíamos compor assim, de Deus? Há um terror inato na contemplação da ideia de universo. No meu sonho escrevia mais, mais, mais. E pensava mais, mais, mais. Cada frase produzia um livro infinito.



As coisas que ficam por dizer

Sonho CCCXIV

Anaïs fora buscar Rostropovich, o seu primeiro amor, para saldar uma dívida de gratidão. "Quero dizer-te uma coisa, mas devemos falar com calma, cara a cara. Pode ser?" Ele estava muito engraçado, mais saudável e alegre. Também estava mais magro, como quando o conhecera e se apaixonara de repente. Tinha arranjado os dentes e permitia-se rir largamente e com humor, e Anaïs reflectia: "É extraordinário como estivemos juntos tantos anos e não me lembro uma única vez de o ver rir." Aquela tristeza dele pesara-lhe muito, ao ponto de não aguentar mais e partir para sempre, mas queria, apesar de tudo, agradecer-lhe, pois era uma pessoa que procedera com bondade. Iam de cadeira de rodas, com uma manta sobre os joelhos, era o seu meio de locomoção, antes de apanharem o carro, pois iam por uma espécie de caminho de cabras. Estariam já assim tão velhos? Anaïs viu ao longe a pequena quinta de dois amigos japoneses, Amie e Douglas, à beira do lago pantanoso. Douglas cultivava a sua horta com um amigo. "Olá! Olá!" Gritou Anaïs animada, enquanto explicava a Rostropovich que aquele era um casal muito simpático, de quem gostava muito. Porém, Rostropovich, apesar da longuíssima separação, teve um ataque de ciúmes e atirou-se ao lago, completamente vestido, de boné e tudo, para ser engraçado e ao mesmo tempo para travar conhecimento com Douglas. Mas Douglas tinha fugido de um regime violento e ficou extremamente assustado, a única coisa em que pensou foi em matar Rostropovich. "Ele é inofensivo! Ele é totalmente inofensivo!" - gritava Anaïs. Mas Douglas não sabia falar português. Disparou sobre Rostropovich e já passara tanto tempo que era evidente que Rostropovich se tinha afogado. Anaïs estava tão desesperada que nem conseguia pensar. "Onde está o corpo? Onde está o corpo?" - perguntava repetidamente, como se um corpo valesse uma alma.



 

 

Palestina

aqui

O Frigorífico (1)

 Quantos séculos 

para construir um frigorífico?

Quantos séculos de esforço humano

e de ideias brilhantes?

Quanta democracia?

Quanta tragédia e quanta fome?

Quanto esforço, quantos gestos,

quantos milhões e milhões de gestos

para chegar a um frigorífico?

Falamos de um frigorífico

mas podia ser a penicilina,

o cloro, a roda, o fogo,

a anestesia e a vacina,

um relógio, o piano, o computador

ou um trompete.

Edison. Einstein. Curie.

Alguém sabe quem foram

William Cullen e Oliver Evans,

Jacob Perkins e James Harrison,

Karl von Linde e Fred Wolf Júnior?

Quanto esforço humano

e quanta alegria para estar de pé?

Quanto cuidado

e quanta vontade de viver?

(...)

Atchim.



Saiba porque é que os extraterrestres não nos contactam


Mais poemas para um Deus Plural - rascunhos (2) de Françoise M.

 

A minha fé é como a terra. 

Tem muitas camadas e muitos estratos, 

uns sobre os outros. 

A minha fé é assim, porque eu não tinha fé.

A minha fé começou em ser habitante do esplendor.

O esplendor que de repente entrava nos olhos,

a propósito de nada.

O esplendor que tomava conta das sensações,

o esplendor de uma terra em chamas

e em que cada coisa ardia com luz própria.

O esplendor que fazia cantar as visões,

até que os ossos 

fossem líquidos como lágrimas.

Esse esplendor sinfónico 

a partir do qual apenas podia pensar:

Deus.

Ser, talvez, atacado por uma ideia.

Em ver o esplendor, a ideia era Deus:

um Deus sem ideia, sem nenhuma ideia.

Um deus que ocupava todo ele

a sensação do esplendor.

Pensamento tão trôpego, tão difícil,

tão desesperado. 

O pensamento não podia, não podia

acompanhar a dança invisível

das minhas sensações.

Seria a alma dançando no corpo?

Seria o corpo da dançando na alma?

Seria Deus como causa 

de um tal arrebatamento indizível?

( - que nenhuma palavra poderá cingir.)

Jamais, nunca o meu pensamento

pôde pensar este acontecimento.

De súbito, aconteceu que a minha fé

foi uma fé nos mortos.

Não estava preparada para isso.

Nada na minha educação o pressupunha.

Mas quando tu morreste, querida amiga,

a minha fé estava lá.

Quando tu morreste, mãe do meu amor,

eu vi que os mortos viviam.

Tu dizias:

«Diz ao meu filho que estou bem.»

E o teu filho chorava.

Porque só eu te podia ouvir?

Fui apanhada também aí,

como uma expedição numa emboscada,

sem aviso, sem preparação,

mas não tive medo.

Como alguém que passa numa esquina

e é arrebatado por um bandido,

assim estava eu,

mas não tinha medo:

a minha tranquilidade era absoluta.

Os mortos apanharam-me de rompante.

Os mortos apanharam-me

e mudaram tudo o que eu sabia.

Não vos vi. Não vos ouvi.

Nem fantasmas, nem vozes,

como aparece nos livros.

Quem sabe o que são vozes mudas?

Eu sei.

São as vozes dos livros e são as vozes dos mortos.

São as vozes que ditam os textos na minha cabeça

e que aparecem sempre fora do tempo,

indevidas.

Presenças vivas incontornáveis.

Estavas por perto, minha amiga, e ainda estás.

Eras talvez demasiado jovem,

não soubeste como partir.

Como explicar?

Apareceram coisas muito parecidas

com o teu sentido de humor.

Por exemplo, um anúncio

num écran de Multibanco.

Aparecia uma coisa, sobre um chocolate,

em que o humor só vivia do contraste.

Ou seja, só vivia por ter aparecido

ali, naquele preciso momento.

Não era pela coisa em si.

Era pelo corte imprevisto

que operava no contexto

e que suscitava a tua presença, 

o teu sub-riso,

de uma maneira que era maior

do que qualquer imaginação.

Maior do que o sonho da tua presença.

Maior do que o desejo da tua presença.

Maior do que a saudade da tua presença.

Então, posso dizer:

a minha fé começou com os mortos.

Agora, quando me visitam nos sonhos,

sei que são eles - os meus mortos.

Porque os mortos são sempre de alguém.

Os mortos nunca são de ninguém.




Imagem criada em parceria com a AI,
Setembro 2025




J.S.Bach - Prelúdio BWV 925 em Ré Maior, dos Seis Pequenos Prelúdios do Caderno de W. Fr. Bach






Não cesso de me maravilhar com a modernidade de Bach. Está lá tudo... e estes minúsculos Prelúdios, que pretendiam ser um "manual de composição" para o seu filho Friedmann, são simplesmente fabulosos. Vou tocando em vários andamentos e articulações. É um trabalho em progresso.

Mais poemas para um Deus Plural - rascunhos (1) de Françoise M.

 


Os mortos morreram,

mas todos os mortos estão vivos.

Quem diz que morreram os mortos?

Estão por toda a Terra 

as almas dos que partiram.

Não falam:

é como se falassem.

Delírio?

Podem chamar delírio 

à luz que arde.

Chamem delírio às sensações

de que os mortos nos velam para sempre,

para sempre, para sempre.

Alguns mortos partem velozes,

não sei por onde.

Mas outros ficam atados à vida,

como se fossem as lágrimas

com que nos atamos a eles.

Alguns têm a delicadeza

de se fazer presentes nas auroras,

na luz que atravessa as folhagens,

não se enganem:

os mortos estão por todo o lado, 

por todo o lado, por todo o lado.

Dos mortos, só conheço,

para já, esta teimosia de existir.

Então que desçam sobre nós

os anjos da terra -

(chamemos-lhes assim).

Porque velam estes por nós?

Terra de provas e expiações,

terra da dor e da tortura,

terra que és mais paraíso

do que qualquer ideia de paraíso.

Terra dos frutos perfumados,

da maravilha das cores,

das luzes ardentes

e das árvores em chamas.

Terra, terra, terra.

Terra que és mais inferno

do que qualquer ideia de inferno.

Terra do ódio que refina a tortura

e onde a liberdade, para o bem

e para o mal - não tem freio.

Acolhe tu, terra infinita,

o exército de amor e paz

e que as hordas dos bons espíritos

nos ensinem a nós que vivemos

como se a morte viesse pôr um fim a tudo,

guerra ou abundância, 

boa-ventura e desventura,

como se a morte trouxesse a tudo

o selo da indiferença

e a vantagem do hedonismo -

quem diz que as almas não têm corpo,

nem formas de locomoção?

Como é pobre a arrogância

da nossa falta de imaginação!...

Que as hordas dos bons espíritos

nos inspirem uma única coisa:

simplicidade.

Delírio?

Por onde vão os mortos,

se não vão por aqui?

Por aqui, por aqui por onde estou?

Terra. Céu. Universo.

Espaço entre o que conhecemos

e o que não conhecemos.

Delírio?

A presença muda dos mortos

também é uma espécie de fala.

Ela diz:

- Que façamos da nossa vida

a criação revolucionária

de uma nova bondade.









Sobre a maldade das boas intenções

 Sonho CCCXIII


F. de Riverday colocara-se numa péssima situação. Subira pelas escadas de incêndio de um prédio de sete andares e agora, por causa das vertigens, não conseguia descer. Não deixava de ser uma posição interessante. Podia ver, nas várias cozinhas iluminadas, diferentes pessoas a preparar o jantar. Pensou que essa contemplação a poderia distrair das suas vertigens e assim dar-lhe coragem para descer, mas, pelo contrário, aquelas vertigens fizeram-na tremer de tal maneira que escorregou e ficou suspensa, presa apenas por uns pequenos ferros, a uma altura de sete andares. «Morro de certeza, se cair. Não há qualquer hipótese.» Numa voz muito sumida, a F. de Riverday começou a pedir ajuda. «Chamem os bombeiros...» Pedia ela. Mas não podia falar mais alto com medo que tudo se desmoronasse e, naquele equilíbrio instável em que se encontrava, nem sequer tinha forças para repetir muitas mais vezes o pedido. Em que sarilho se tinha metido!... De repente alguém numa das cozinhas se apercebeu do que se passava. Veio um grupo de pessoas, todas com muita vontade de salvar a F. de Riverday. Pegaram nela e tiraram-na do perigo, mas queriam cortar as suas pernas, para poderem transportá-la melhor. A F. de Riverday suplicava que não fizessem isso, que não era boa ideia, mas eles achavam que sim e diziam que depois no hospital colocariam de novo as suas pernas, com uma operação. Enquanto foram buscar as serras, a Riverday conseguiu convencer um dos rapazes e raparigas a levarem-na inteira para um local seguro. Assim aconteceu, graças à sorte. Mas nunca deixa de ser surpreendente a dimensão que pode tomar a maldade de uma boa intenção.

Imagem criada com ajuda da IA


Dentes e fadas

Sonho CCCXII

De repente, dei-me conta que me faltavam vários dentes na parte de trás da boca, no maxilar inferior. Que coisa tão estranha! Não me tinha apercebido de ter arrancado assim tantos dentes. Pelo contrário, costumava sentir muita satisfação com os meus dentes. Limpava-os e escovava-os cuidadosamente. Tinham nascido bem alinhados, simétricos e fortes. Iria custar muito dinheiro fazer implantes para todos aqueles buracos. E além disso, tinha um outro dente a abanar. Meu Deus... que caos... Abanava tanto que pude tirá-lo com a língua, como se fosse um dente de leite. Olhei para o dente com espanto, pois era mesmo um dente de leite, sem raiz. Como era possível que me caísse um dente de leite aos cinquenta anos? A minha maturidade tinha sido difícil de alcançar, mas não imaginava que esse processo também tivesse um reflexo expressivo no meu corpo. Pelo menos havia esperança de que nascesse um outro dente, desta vez definitivo. Tentava animar-me com essa ideia, perante tantas constatações dolorosas. Uma criança falava da fada Serôntia. «Nunca ouvi falar.» - dizia eu. «Quem é ela?» «É a fada dos jardins, que cuida das flores.» Precisava muito dessa fada, estava contente por saber que existia. O meu jardim secreto, aquele espaço dos meus sonhos que eram só meus e em que ninguém podia tocar, estava em ruínas e parecia um matagal. Havia muito trabalho a fazer e a ajuda de uma fada seria excelente. 

Imagem criada com a ajuda da IA


Mosteiro Interior

 



Criei esta imagem com recurso à inteligência artificial. Não me satisfaz inteiramente, mas é um ponto de partida para uma tarefa de imaginação. Comecei por pedir ao Gemini a imagem de um labirinto a preto e branco e a máquina deu-me um labirinto bastante inócuo e desinteressante, quase asséptico e, na verdade, artificial. Pedi então que o transformasse segundo o estilo de Escher. Surgiu uma coisa mais interessante e, curiosamente, sem o espírito de Escher. As escadas estavam orientadas segundo uma perspectiva normal, ainda que não conduzissem a lado nenhum. As pessoas pareciam manequins. Era uma coisa quase inerte, nitidamente uma cópia, uma inspiração pobre. Pedi então à máquina que acrescentasse algo de incompossível à imagem. Nesse momento, tive a clara sensação de não ter sido compreendida, mas foi igualmente interessante porque a máquina "varreu" a imagem e a impregnou de um sentido abstracto que me desagradou profundamente. Digamos que a imagem estava ainda mais morta. Percebi que me faltava qualquer coisa que não sei definir e que talvez fosse uma solução para aquela sensação de ausência de vida na imagem, uma solução que passaria por um aspecto medieval, por qualquer coisa afim de uma alma medieval, anti-moderna. Pensei em Tarkovski. Pedi então ao Gemini que recuperasse os passos anteriores e que desse à imagem um aspecto medieval e o resultado foi bastante surpreendente, fiquei contente. 

O conceito de mosteiro interior inventei-o a partir de um outro conceito muito antigo, o de "palácio da memória". Cícero fala deste método no seu De Oratore. Sempre achei o conceito fascinante, embora nunca o tenha colocado em prática. Mas eu própria em criança tinha o hábito de criar espaços imaginários, cujo mapa memorizava e onde tinha o hábito de brincar. Eram espaços muito complexos que multiplicavam o espaço real em muitas camadas, divisões e andares, tal como o labirinto desta imagem, que talvez por isso me tenha agradado. Desde muito jovem senti um grande fascínio com o que imaginei ter sido a vida dos primeiros monges, cristãos revolucionários que se uniam num propósito comum, principalmente um fascínio com a vida daqueles que anonimamente trabalhavam nos campos, rezavam nas horas marcadas pelo toque dos sinos, estudavam nas bibliotecas, pintavam iluminuras e serviam na sua comunidade, instruindo e cuidando. Também é verdade que muitas vezes imagino que é possível que eu mesma tenha sido uma monja numa qualquer outra vida e que essa talvez tenha sido uma vida especialmente pacífica e feliz. Não sei porque me visitaram tão cedo estas estranhas ideias, que até para mim mesma foram e ainda são estranhas. Mas como não existe na sociedade actual um mosteiro no qual me pudesse integrar, inventei este conceito, como modo de sobrevivência. 

Não se trata de um simples conceito que sirva apenas uma experimentação abstracta, de pensamento ou de colocação de hipóteses. Na verdade, trata-se de um conceito habitável e trata-se de uma maneira de viver. Trata-se de viver uma vida para Deus, mas esse Deus não é o de nenhuma religião, é um pensamento singular e uma experiência em constante movimento e expansão, na verdade, é como um processo de amplificação da consciência pela acção e por uma prática que é quase uma técnica. Diríamos que essa técnica é muito específica e composta por certa espécie de disciplina e por vários elementos insignificantes e concretos que por vezes se podem traduzir em epifanias. Os pensadores mais importantes e que me ajudaram a dialogar com este pensamento e com estas descobertas e acontecimentos foram Kant, Espinosa, Dostoievsky, Tarkovski e Jesus. As duas experiências mais importantes foram a do esplendor, na dança e na natureza, e a da oração sem palavras, na execução e na leitura da música de Bach para teclado, ao piano. Uma terceira experiência radical foi a de definhar, na separação de Deus. 

Tudo isto está dito de forma extremante sucinta e praticamente incompreensível. Na verdade, cada uma destas frases poderia produzir um livro. A ideia de ser como um invisível monge moderno, lutando de algum modo pela paz e pela liberdade por meio de uma técnica específica, mas em movimento, a ideia de se ser, de algum modo, missionário, mas de um modo invisível, esta ideia exige, para ser bem explicada, um longo desenvolvimento. Todos os espaços percorridos no mundo são espaços duplos do mosteiro interior, como se o mundo se espelhasse na alma à maneira de um templo. Por exemplo, pode parecer pouco compreensível que o esplendor se sinta na dança e na natureza, mas de facto essa percepção do esplendor consiste numa sensação, por um lado, do impacto monumental da luz e das cores, uma sensação que traz de um golpe a percepção da grandeza e da infinitude do espaço, e, por outro lado, de um movimento transcendental do corpo que se abre para fora de si numa espécie de voo ou transparência infinitesimal. E quando digo que Deus é um pensamento singular, obviamente não estou a dizer que Deus seja apenas um pensamento; da mesma maneira que o universo não é apenas um pensamento e da mesma maneira que eu não sou só um pensamento, sou um ser vivo no tempo e no espaço, porventura ocupando ainda várias outras dimensões de que não me apercebo. 

Por outro lado, também não quero dar a entender que é "menos" ser pensamento e que é "mais" ser real, isto é, existir. Neste ponto estou com Espinosa, que vê pensamento e extensão (isto é, espaço e tempo) como dois atributos de uma substância eterna e infinita que tem infinitos atributos. Compreendemos melhor a ideia de Espinosa, na nossa visão moderna, se trocarmos o termo "atributo" por "dimensão". Então podemos imaginar uma substância eterna e infinita, universo ou Deus, como um conjunto infinito de dimensões nas quais a nossa existência opera um "corte", extraindo dessa multiplicidade duas dimensões: pensamento e extensão, na forma de espaço-tempo. Não é que estas duas dimensões, por serem apenas duas, sejam falsas ou distorcidas. Elas são vivas e reais, são um corte do infinito. E ainda que o universo como totalidade ou infinitude seja possível de compreender como ideia (nomeadamente como ideia da razão pura), mas impossível de perceber como realidade, isso não quer dizer que o universo como realidade não exista. Mas a percepção e a consciência de Deus como realidade, contudo, pertencem àquele domínio dos actos de fé e das experiências que não são partilhados de um modo universal por todos os seres humanos.