Se pudéssemos avançar no tempo das nossas vidas e, quem sabe, usar um chapelinho com véu


Anaïs D. conhecera um rapaz simpático, que parecia muito encantado com a sua presença. Anaïs observava os seus traços finos e agradáveis, o seu ar distinto, e pensava: "Era tão bom que me apaixonasse!..." Estava cansada de viver intermitentemente o mesmo amor impossível ao longo de vinte anos, de um modo por vezes inconsciente, outras involuntário. Mas nada. O seu coração não vibrava. "Que estranho órgão, este!..." Entrava na casa desse rapaz, que era muito pobre. A sua casa tinha apenas duas divisões e nenhuma janela. Numa das divisões estava a sua cama e na outra a cama dos pais que tinham tido recentemente um outro bebé. Anaïs não dizia nada, mas pensava nas condições duras em que vivem tantas famílias. "Uma vantagem desta crise é que os preços das casas pelo menos vão baixar." - comentou. Era um comentário bastante infeliz, mas os preços das casas tinham-se tornado escandalosos. O rapaz olhou para ela como se estivesse a falar numa língua estrangeira. Porque, sim, hoje em dia para um certo senso-comum parece natural que um gang de assaltantes de bancos à pistola seja preso, mas não parece natural que haja regulamentação dos preços no mercado. Como se para o senso-comum a natureza da flutuação dos preços nos mercados fosse e tivesse de ser intrinsecamente fora da lei (como o estado do tempo), quando na verdade essa é apenas uma conquista do liberalismo económico, sustentada e defendida por certos interesses e actos de fé. "Mas os preços não têm de ser como os dias de sol e de chuva e andar ao sabor de regras não humanas." - disse Anaïs D., enquanto entravam os dois num centro comercial que tinha um chão tão escorregadio que dava para patinar com os próprios sapatos. Era fantástico. Começaram a patinar. Toda a gente patinava por ali. Às duas por três a Anaïs caiu de rabo e foi a patinar de rabo no chão até chegar a uma balaustrada de onde caíam muitas pessoas, por não conseguirem controlar bem a velocidade da patinagem. Viu uma senhora a dar uma grande cambalhota no ar e a cair. Mas em baixo havia uma corrente de águas transparentes com muitas cascatas onde circulavam equipas de pronto-socorro em motas de água, dado o elevado número de pessoas que ali caíam. Também havia outras equipas de desinfecção das águas, com barcos munidos de mangueiras. "Muito bem organizado." - pensava Anaïs que entretanto com a velocidade que ganhara também levantara voo sobre a balaustrada e caíra. Anaïs nadou durante algum tempo nas águas transparentes até que chegou a um local seco onde se pôs de pé. A seu lado estava uma velhota muito aprumada, com um chapelinho de véu e uma expressão tão inteligente e imperscrutável como a da rainha de Inglaterra. "Nem sequer a maleta lhe caiu." - pensou Anaïs, observando a maleta preta que trazia no braço. De repente, Anaïs D. apercebeu-se que à frente de ambas se aproximava uma onda enorme. "Aaaaah!... Aaaaaah!..." - gritou Anaïs, enquanto a velhota permanecia imperturbável. A onda chegou, mas não era mais que uns respingos, uns respinguitos muito suaves. "Era só isto?... Era só isto?..." - repetia Anaïs, perplexa. A velhota permanecia imperturbável, com o seu chapéuzinho e a maleta. Não há dúvida de que estavam as duas lado a lado, mas a segunda levava um grande avanço.