Braço sem corpo brandindo um gládio

Fragmento 193



BRAÇO SEM CORPO 
BRANDINDO UM GLÁDIO



Entre a árvore e o vê-la


Que arco da ponte mais vela

Deus?... E eu fico tristonho


Por não saber se a curva da ponte


É a curva do horizonte...






Entre o que vive e a vida


Pra que lado corre o rio?


Árvore de folhas vestida -


Entre isso e Árvore há fio?


Pombas voando - o pombal

Está-lhes sempre à direita, ou é real?







Deus é um grande Intervalo,

Mas entre quê e quê?...



Entre o que digo e o que calo


Existo? Quem é que me vê?


Erro-me... E o pombal elevado

Está em torno na pomba, ou de lado?







Podia ser o título de um quadro, este título de poema que traz imediatamente uma imagem fortíssima, uma imagem nua do desespero. O andamento é majestoso, largo, e tem algo de marcha fúnebre. O tom grave, subliminar, por vezes soprado entre dentes, é como o da voz de um mago, com pequenas, suavíssimas, milimétricas intonações de escárnio, ténues melodias para o agudo de uma ironia desencantada e desligada, não por indiferença ou futilidade, mas por tão sofrida. Leio este poema de Pessoa em voz alta, na cama, interrompendo as cartas de Sá-Carneiro que me deixam sobremaneira irritada. Enquanto o leio, totalmente imbuída daquele ritmo obscuro e lento, intensíssimo, o que não interessa para a crítica mas que me interessa a mim é que todos os pelos da minha pele se eriçam como se em contacto com uma fonte eléctrica, como se uma onda que partisse dos pulsos me varresse até à ponta dos pés. O coração aperta-se, os olhos aquecem - e abre-se um espaço imenso. De repente estou no alto de qualquer coisa muito alta e vejo uma paisagem muito vasta. Não sabemos como sabemos, mas eu sei como dizer este poema. Que andamento, que curva melódica em cada frase, que registo nas palavras, que respirações, que pausas, que cortes. E o poema é toda uma síntese (insuperável) de uma entrada no caos, uma síntese da minha própria existência. Porque não chorar, se estas lágrimas, de uma forma tão obscura, me redimem? «Que arco da ponte mais vela / Deus?...» Quem algum dia lhe aconteceu perguntar «Entre a árvore e vê-la / Onde está o sonho?» e entrou no caos, naquele caos em que a pergunta «o pombal está-lhes sempre à direita, ou é real?» faz sentido e em que a dor não dá tréguas, nem aquelas que se conquistam com os ciclos torturados da morte lenta e ressureição por meio do álcool ou de outras drogas, sabe que a heteronímia não é mais que um recurso (um entre poucos) para se ficar inteiro.