A morte de Bergotte

Fragmento 183


«A [morte] de Bergotte surgiu na véspera (daquele dia), quando assim se confiara a um desses amigos (amigos? inimigos?) de excessivo poder. (1) Morreu nas circunstâncias seguintes. Devido a uma crise de uremia bastante ligeira tinham-lhe prescrito repouso. Mas como um crítico havia escrito que na Vista de Delft, de Vermeer (emprestado pelo museu da Haia para uma exposição holandesa), quadro que ele adorava e julgava conhecer muito bem, havia um pano de parede (de que ele não se recordava) tão bem pintado que, visto em separado, era como uma preciosa obra de arte chinesa, de uma beleza que se bastaria a si mesma, Bergotte comeu umas batatas, saiu e entrou na exposição. (2) Logo aos primeiros degraus que teve de transpor foi acometido de tonturas. Passou diante de vários quadros e sentiu a impressão da secura e da inutilidade de uma arte tão artificial e que não valia as correntes de ar e de sol de um palazzo de Veneza ou de uma simples casa à beira-mar. Chegou enfim diante do Vermeer, que recordava mais resplandecente, mais diferente de tudo o que conhecia, mas no qual, graças ao artigo do crítico, reparou pela primeira vez numas figurinhas de azul, na areia que era cor-de-rosa e, enfim, na preciosa matéria do pequeníssimo fragmento de parede amarela. As suas tonturas aumentavam; como uma criança atrás de uma borboleta amarela que quer apanhar, não tirava os olhos do pequeno e precioso pano de parede. «Era assim que eu devia ter escrito», dizia. «Os meus últimos livros são demasiado secos, devia ter aplicado diversas camadas de tinta, devia ter feito com que a minha frase fosse preciosa em si mesma, como este pequeníssimo fragmento de parede amarela.» Entretanto não lhe escapava a gravidade das suas tonturas. Numa celeste balança aparecia-lhe, em cima de um dos pratos, a sua própria vida, enquanto o outro continha o pequeno fragmento de parede tão bem pintado de amarelo. Sentia que imprudentemente trocara a primeira pelo segundo. «E, no entanto», pensou, «não queria ser para os jornais da tarde a notícia sem importância desta exposição.»
Repetia de si para si: «Pequeno pano de parede amarela com um alpendre, pequeno pano de parede amarela.» Entretanto deixou-se cair num sofá circular; e de repente deixou também de pensar que a sua vida estava em jogo e, voltando ao optimismo, disse de si para si: «É uma simples indigestão causada por aquelas batatas mal cozidas, isto não é nada.» Sofreu uma nova crise e rolou do sofá para o chão, e todos os visitantes e guardas vieram a correr. Estava morto. Morto para sempre? Quem poderá dizê-lo? É evidente que as experiências espíritas, tal como os dogmas religiosos, não provam que a alma perdure. O que se pode dizer é que tudo se passa na nossa vida como se nela entrássemos com o fardo de obrigações contraídas numa vida anterior; nas nossas condições de vida neste mundo não há nenhuma razão para que nos julguemos obrigados a fazer o bem, a ser delicados, mesmo a ser corteses, nem para que o artista ateu se julgue obrigado a recomeçar vinte vezes uma obra quando a admiração que ela virá a provocar pouca importância terá para o seu corpo comido pelos vermes, como é o caso do pedaço de parede amarela que um artista para sempre desconhecido, apenas identificado sob o nome de Vermeer, pintou com tanta ciência e refinamento. Todas estas obrigações, que não são sancionadas na vida presente, parecem pertencer a um mundo distinto, fundado na bondade, no escrúpulo, no sacrifício, num mundo completamente diverso deste, e do qual saímos para nascer nesta terra, porventura antes de para lá voltarmos para tornarmos a viver sob o império dessas leis desconhecidas a que obedecemos porque trazíamos em nós o seu ensinamento, sem sabermos quem nele as havia traçado: essas leis de que nos aproxima todo o trabalho profundo da inteligência e que apenas são invisíveis - se o são! - para os tolos. De modo que a ideia de que Bergotte não estava morto para sempre não deixa de ser verosímil.

Enterraram-no, mas durante toda a noite fúnebre, nas vitrinas iluminadas, os seus livros, arrumados em grupos de três, velavam como anjos de asas abertas e pareciam ser, para aquele que já não existia, o símbolo da sua ressureição.» (3)

Vermeer, Vista de Delft, 1660-1661, óleo sobre tela, 98 cm x 118 cm

Onde está o pequeno fragmento de parede amarela, no quadro de Vermeer?

É aquele que brilha como uma promessa atrás do castelo de duas torres?

Todas as reproduções são pobres quanto a captar esta «matéria preciosa» de que nos fala o texto.

E como falar desta coisa concreta, real, subtil e difícil e que apenas entrevimos de quando em quando, mas cuja memória resistente nos faz colocar a vida num dos lados da celeste balança de pratos?

Esta descrição da morte de Bergotte (aliás, extraordinária) é afinal mais um modo de dizer a Ética de Espinosa.

(1) Narcóticos.
(2) «Petit pan de mur jaune», que o tradutor traduz por «pano de parede amarela». Porém, esta tradução não parece fazer sentido. O meu fraco francês não me permite propor uma alternativa, mas a ideia é que seria um pedaço de parede amarela.
(3) Proust, Em Busca do Tempo Perdido, Vol. V, pp. 179-180, tradução de Pedro Tamen.