Os livros e a «pequena terra»

Fragmento 181



De que serve viajar, se para todo o lado levamos a parda paisagem do nosso pequeno eu?

Para quê palmilhar o mundo, se sempre e por todo o lado nos encerramos nas mesmas  e iguais paredes de nós-próprios?

Protegidos pelos hábitos do pensamento rotineiro, repetido, sem turbulência; cegos para os defeitos de carácter que nos fariam realmente sonhar com ser outros; comodamente instalados no conforto de um qualquer meio de transporte ou de um rico quarto de hotel, será que podemos chamar a uma tal viagem - viagem?
 
É que não existe nada de mais pequeno e parasitário na alma dispersa da humanidade sucessiva do que essa zona paradoxalmente cordial e autoritária com que embandeiramos os nossos corpos sociais - o eu. É ele o principal inimigo a abater, lançando mão de todas as estratégias, é ele o alvo de todos os exercícios, de toda a disciplina de destruição. 

«Afinal, viajar é sentir». Dizia o Álvaro de Campos nesse espantoso poema em que ele mesmo se descreve como um formidável dinamismo obrigado ao equilíbrio de estar dentro do seu corpo, de não transbordar da sua alma. Que maneira incrível de abolir um eu!...

Afinal - pensamos - viajar é pensar. Experimentar, sim, também, mas num outro plano. Por exemplo - experimentando escrever. Ou melhor, tudo o que leva até lá, e depois de lá. Sem câmara portátil, sem fotografias simpáticas, sem registo de identidade, sem boletim de vacinas e sem garantia de regresso. E não podemos arrogar-nos sequer de estar completamente conscientes, neste processo. É por essa razão que uma tentativa de descrição seria ainda inferior à memória de um sonho.

Viaja-se sem nenhum tipo de iniciação, sem prazer e sob o jugo de uma necessidade implacável. Porque existe uma tal violência no exercício de sentir; existe uma tal franja insensível do insuportável no exercício de sentir; existe um tal limite implacável em que pegamos fogo e nos consumimos até ao estriamento, até ao nada; uma tal além-dor que nos despega do corpo como uma folha morta e sem-sentido; e existe uma tal dificuldade em pensar; tantas barreiras abstractas a remover - imensas, pesadas, inertes, invisíveis - e depois, mesmo depois de tudo, uma tal vertigem; que tudo é risco, nesta destruição.

É neste contexto que Deleuze fala de «prudência», de «reservar uma pequena terra». E a minha pequena terra - é ler. É de lá que parto para outras experimentações. Como agora, para falar da morte de Bergotte diante de um quadro de Vermeer, num livro de Proust.

Mas já não faz sentido falar imediatamente da morte de Bergotte.