A propósito de Proust e de um saco de praia

Fragmento 149


Penso nos mil gestos que fazemos para nos termos de pé, para sair à rua de roupa limpa e cara lavada.

Penso nos gestos ínfimos, incógnitos, anónimos e multiplicados. 
 
Olho para o meu saco de praia azul às bolas brancas, que vai ficando velhinho e desfiado.

«Como seria o meu saco de praia há dez anos?» 
 
Já não me lembro desse saco de praia. 
 
«E se de repente me aparecessem nas mãos esses vestígios de repente vivos de ter existido há dez, há vinte, há trinta anos, como seria?...» 
 
Lembro-me da memória involuntária de Proust e sei com a pele que se um desses sacos estivesse nas minhas mãos toda a sensação de existir nesses anos correria para mim como uma onda enorme, uma avalanche ou uma derrocada. 
 
«Porque é que só a ideia de aceder ao vivo dessa memória me traz tanta dor?...» 
 
A minha alegria é exactamente como um jardim que floresce sobre os mortos. 
 
Talvez uma arte involuntária de esquecer, ou de viver só por hoje, ou de sentir como eterna novidade a incrível surpresa das cores. 
 
Porque só a ideia de poder recordar a sensação real de ter existido nessas décadas me traz como que uma avalanche da dor de andar pelo mundo a existir... sempre incompleta. 
 
Por entre a espuma dos dias e dos gestos incógnitos das obrigações e da sobrevivência está a sensação de existir de passagem e sempre a caminho de outra coisa, sempre um pouco aquém ou além, promessa nunca alcançada, Jerusalém celeste ou terra prometida que busco como um antigo judeu, uma judia de alma.