Sobre a liberdade


Sonho LXVII

 
Estava preso numa fria e escura catacumba, em conjunto com uma mulher grávida de tempo avançado. O chão de terra batida era húmido e, das paredes, longas estacas afiadas como espadas saíam, de alto a baixo. Por todo o lado se viam centenas de estacas alinhadas que à distância poderiam parecer uma seara metálica na vertical.

Estávamos tão cansados que tínhamos dificuldade em permanecer de pé, mas não podíamos sentar-nos no chão, nem encostar-nos às paredes. A mulher começou a chorar, desesperada, e cambaleava com as costas perigosamente perto das estacas. Decerto pensava como conseguiria ter o seu bebé, mas que podia eu fazer?...

Havia ali um largo poço que se abria no chão como uma cratera. Uma longa escada em espiral descia na escuridão e parecia realmente intransitável, absolutamente intransitável.

«Não há outra solução. É preciso descê-la.»

Comecei a descê-la sozinho, porque a mulher não quis seguir-me. Ela dizia que ali era a Morte, a fronteira com um outro mundo, a partir do qual nos evaporávamos. Mas à medida que descia apercebia-me que o chão estava mais limpo e que as estacas começavam a desaparecer. Aí era pelo menos possível encostar-nos às paredes. Qual era o problema se nos evaporássemos?... Não podíamos ficar pior do que já estávamos.

Entretanto, chegava a hora da visita e uma multidão de turistas perfumados percorria em fila as catacumbas, atrás do guia que explicava as mesmas coisas, ora em espanhol, ora em francês, ora em inglês, ora em chinês.

Esses patetas olhavam para nós como se fôssemos ratos embalsamados ou qualquer outra espécie museológica de corpos conservados em formol. Eles eram muitos, e nós apenas dois, mas para toda essa gente que ali passeava paulatinamente não havia qualquer comunicação com a nossa realidade. Era como se fôssemos animais de outra espécie, que tinham sido ali colocados, justamente, por um obscuro desígnio inquestionável.

Se aquilo era uma saída, ou a Morte, como dizia a mulher, ou um antro de crocodilos, pois estávamos na América do Sul, era bom que ninguém se apercebesse do que eu tinha descoberto. O melhor era que o inimigo não reparasse nos nossos movimentos e nos considerasse presos e aniquilados, não fosse ele mover novas forças contra nós.

Éramos activistas pelos direitos humanos numa ditadura monstruosa e por isso nos observavam como se fôssemos casos de museu. Enquanto nos miravam de alto a baixo, deixávamo-nos estar imóveis na nossa posição miserável, sujos, pestilentos e exaustos, atravessados pela dor que nos vinha dos pés como por uma espada de aço que nos furava de lado a lado.

«Vão-se embora, sua cambada de hienas.» Era no que eu pensava.

Terminada a hora da visita, dediquei-me de novo às minhas explorações. Descia na escuridão, tacteando o chão com as pontas dos pés, mas, depois de muito descer, aterrado e vacilante, aconteceu uma coisa inexplicável.

Descobri uma saída para um baldio, um miserável descampado que parecia em tempos ter servido para acumular sucata.

Não era lógico que ao descer as escadas de uma catacumba tivesse ido ao encontro da superfície.

Estávamos no meio de uma selva tão perigosa, que estar preso ou em liberdade eram apenas os dois termos de uma equação irresolúvel. Mas aquela nesga limpa de céu e um tufo de flores que me olhavam cara a cara, esses dois elementos recordaram-me de súbito que sabia voar. Com uma pequena corrida ganhei balanço e consegui montar-me numa corrente de ar.
 
«Vamos lá, rapaz!... Não te esqueças que sabes voar!...»

Na verdade, estava bastante destreinado, mas apanhei o jeito muito depressa. Voava, voava, voava e pensava: «Pior do que estar preso pelas circunstâncias ou pelos homens, são os pensamentos que nos amarram e condenam.» Miseráveis pensamentos que nos impedem de explorar o mundo e nos deixam à mercê de carrascos, como múmias embalsamadas.