Outras dimensões e carros voadores

  Sonho CCCXI


Os patamares e a escada do meu prédio tinham sofrido aquilo que poderíamos chamar uma transformação delirante. Eram incrivelmente amplos e levavam-nos a sítios desconhecidos, como se através deles se realizasse uma dobragem de dimensões. Porque não? Muitas vezes me pergunto se estes espaços que aparecem nos sonhos, como os espaços que aparecem nos quadros de Escher, não estarão mais próximos da verdadeira realidade do espaço, talvez mais ainda do que a nossa percepção habitual do espaço. É óbvio que a nossa percepção humana do espaço tridimensional também será uma realidade, pelo menos uma realidade enquanto percepção e enquanto captação de três dimensões, mesmo que existam muito mais dimensões. Estou a pensar em Espinosa e na sua substância de infinitos atributos e estou a pensar num universo de múltiplas dimensões, das quais a percepção humana apresenta uma espécie de "corte", como quando cortam o solo em profundidade e ficam â vista as suas diferentes camadas. Mas não deve ser nada impossível que todas coisas habitem em si mesmas e ao mesmo tempo espaços com outras dimensões e até que tenham em si outras dimensões materiais que excedam ou transcendam a nossa percepção habitual da matéria. Habitual... digo habitual porque também acontece que sob o efeito de uma droga ou de uma emoção muito forte (ou de uma ginástica de pensamento) a nossa percepção e as nossas sensações viajem para planos insuspeitados e imprevisíveis, onde a percepção comum se desmorona ou amplifica. De qualquer modo, deixando de lado estas divagações, de um ponto de vista funcional e pragmático, aqueles espaços delirantes dos novos patamares das escadas do meu prédio eram um absoluto desperdício de espaço. Não só cabiam ali apartamentos inteiros, como cabiam quarteirões de prédios inteiros. Porém, eu estava muito contente. No fundo de um desses patamares que descia como a encosta de uma grande montanha inclinada, na diagonal, encontrava-se um enorme buraco que se abria para o grande auditório da Gulbenkian, onde os músicos ensaiavam o "Fausto" de Berlioz. «Que maravilha!...» - pensava eu. «Nem preciso de pegar no carro para vir à Gulbenkian, nem preciso de pagar bilhete e posso deliciar-me com os ensaios.» Por ali ficava, fruindo o espectáculo, e já não me lembro bem como transitei dessa experiência para o volante do meu automóvel que recuava em marcha atrás sem que nenhuma mudança nem os travões funcionassem. Carreguei tão desesperadamente no travão que cheguei a ter dúvidas sobre qual a função de cada pedal. Já não estava certa a respeito de qual pedal seria realmente o travão, a embraiagem ou o acelerador. Continuava a andar em marcha atrás enquanto me obrigava a pôr de lado o desespero e a clarificar as ideias. «Embraiagem, travão, acelerador. O desespero neste caso é inútil. O travão não funciona, ponto final. Que podes fazer? Porque é que o carro está a andar?» Depois de eliminar o desespero, ocorreu-me que não valia a pena atribular-me tanto, que o melhor talvez fosse morrer e estava o assunto resolvido. Infelizmente, morrer dentro de um carro espatifado não me parecia uma morte tranquila. E é curioso como não sonhamos apenas com uma boa vida, também sonhamos com uma boa morte. Porque não parava de andar o maldito carro? Não é verdade que todo o movimento tende a parar? Como é que ainda não tinha originado um acidente e estava ainda viva? Lembrei-me de abrir a porta, pois o atrito com o ar obrigaria a uma redução da velocidade, e, quem sabe, talvez conseguisse saltar para fora do carro. Abri a porta e lentamente o carro parou, sem um único arranhão. «Eis uma sequência das maiores improbabilidades, todas seguidas umas às outras... E ainda há quem defenda que a arte deve ser verosímil, quando a vida está longe de o ser...» Olhei para cima e vi um carro voador, que calmamente passava por cima dos outros, evitando o engarrafamento do trânsito. "Ena... Finalmente inventaram um carro voador, já era sem tempo." Lá dentro o homem que guiava tinha duas torres de controlo, uma de cada lado do volante, cheias de luzes. Mas... para quê tanta coisa? Era o único carro voador existente, não havia nenhuma possibilidade, como acontece com os aviões, de colidir com a rota de outros carros voadores. A simples existência daquele carro voador era em si mesma a antítese do imperativo moral de Kant: "Age como se a máxima da tua acção pudesse ser transformada em lei universal." Quem nos dera que as coisas fossem assim tão simples... Neste caso, o carro voador só podia andar por ali por ser o único carro voador. Apanhei boleia do carro voador, pois estava sem carro. O homem entregava comida e estava atrasado com uma encomenda para uma festa de crianças. O carro parava suspenso no ar perto de um terraço, mas não era fácil entregar a comida dessa maneira. O homem, que era tão habilidoso na condução daquele carro voador, não tinha equilíbrio no ar para entregar os sacos, mas eu, por causa dos treinos em pontas no ballet, tinha um equilíbrio fantástico. Era uma festa de crianças, mas a encomenda de comida só tinha legumes. «Pobres crianças, até numa festa... só bróculos e alho francês.» Eu e aquele homem fazíamos uma bela parceria, simples e alegre, como de facto poderia sonhar que existisse, embora nunca a tivesse vivido: ele conduzindo o carro voador e eu entregando a comida, com artes de equilibrista.