Breve


Nesta capelinha no Bom Sucesso foi onde fiz a minha primeira comunhão, com rosas brancas nos totós (e no raminho) e umas sandálias de verniz muito apertadas. As rosas eram do jardim da minha avó, as suas flores preferidas. As sandálias eram da minha prima Joana. O vestido era especialmente bonito. Mandaram-no fazer em piquê e bordado inglês, com pequeninas mangas de balão e um laço atrás, lembro-me bem. O meu pai disse-me que eu tinha deitado a língua de fora ao padre. Era bondoso e delicado, aquele padre, o que se vê bem nesta fotografia. Só tenho boas recordações dessa experiência infantil. Ao meu lado está a Sofia, que veio a ser campeã nacional de ténis, a olhar com muita atenção para tudo aquilo. Eu e o meu irmão, felizes, sempre a pensar nas próximas brincadeiras e disparates que éramos pródigos em inventar e que punham à prova a paciência de alguns. Mas foi a minha mãe quem me ensinou a rezar. Todas as noites, em pequena, enfaixava-me numa manta à maneira russa e rezava comigo. Que bom que era e que grande força me deu, na verdade. Sou daquela espécie de pessoas que não podem viver sem Deus. Ou se consomem e dissipam, ou definham... ou se suicidam, os desta espécie. Talvez por isto ame tanto Dostoievski. Não faço parte de nenhuma religião. Deve ser reconfortante ter uma fé comunitária e partilhada, mas nunca me foi possível aceitar nenhuma espécie de dogma, nenhuma narrativa, nenhum movimento geral. Quando tinha nove anos e vi as crianças durante a fome da Etiópia com os olhos cobertos de moscas, na televisão, decidi que não havia Deus. Tive e tenho muitas questões, muitas angústias, conflitos e aporias, muitos becos sem saída, muitos desastres, por assim dizer. O meu caminho não foi e não é a direito. E tenho um horror visceral a clichés, ideias e crenças que parecem ser aceites sem sentido crítico e que avançam nas massas com uma força cega, mecânica, porque observo que este tipo de pensamento pode produzir sofrimento, miséria e, em último grau, loucura. Quanto a isto, acho que a coisa que mais falta é indignação. Poderia escrever longamente a este propósito, mas quero só falar de uma coisa que são as sensações. Certas sensações extraordinárias e maravilhosas, inexplicáveis e magníficas. No esplendor, na natureza toda e nos rostos, tantas vezes sinto simplesmente uma coisa: Deus. Estou bem numa igreja, como à sombra de uma árvore ou no topo de uma montanha, olhando em volta.