António Pizarro - Ínfimas notas sobre a morte, para uma outra escrita





É inegável: a morte é o limite da experiência. A morte, só conhecemos a dos outros. E a vida (assim como a morte) são-nos dadas como acontecimentos. Este acontecimento extraordinário da existência, como pensá-lo? Nunca conseguiremos pensá-lo, na sua totalidade. Poderemos dedicar a isso uma vida inteira, escrever centenas ou milhares de páginas - mil vidas não chegarão para explorar e dissecar todas as vias possíveis do pensamento. Uma oportunidade infinita. A vida é um mistério absoluto, que nos obriga sempre a pensar infinitamente, todos os dias. Recomeçamos inúmeras vezes, mas, no fundo, nunca recomeçamos. Partimos sempre do meio, nunca do princípio. Tentamos desfazer os estratos, as crenças, os lugares-comuns, as vaidades, as casas que nos abrigam e as ideias confortáveis que são tão atractivas mas que, por dentro, cheiram a inferno e a podre. Pensamos infinitamente, em múltiplas direcções. Muitas não conseguimos agarrá-las, são como sonhos esquecidos. Vamos por aqui, vamos por ali. Escrever é a nossa máquina de pensar. Uma máquina rudimentar e libertária. Ao escrever podemos ir muito devagar. Abrandamos de um modo inimaginável. Voltamos atrás, cortamos, dividimos, avançamos. Temos assim muitas lentes de aumentar e diminuir, para as nossas visões. Uma máquina de fazer zooms. Ampliamos a consciência para franjas e zonas cada vez mais difíceis, mais obscuras. Mas há uma coisa inegável, sobre a vida. Se a vida nos é dada, se a vida é um dom maravilhoso e absoluto e, em última análise, imperscrutável, ela não nos é dada como fatalidade. Poderá constituir, por si mesma, um mistério total. Poderá ser opaca, esplendorosa, infernal e avassaladora. Obrigar-nos continuamente a pensar em Deus, porque aquilo que sentimos nem sempre conseguimos traduzi-lo por palavras e porque há uma experiência do amor, do esplendor e da dor que nos lança continuamente em Deus. A vida poderá ser difícil e desafiante, como uma prova transcendental. Divina e sublime, em toda a sua infinita delicadeza e pluralidade. Surpreendente até ao último grau da nossa faculdade de imaginação. E poderá ser tentador pensar na sua anulação como um alívio para o excesso de intensidade e para a violência. Uma saída, no limite do desespero. Mas isso é toda uma outra discussão, que implicaria saber o que fosse a morte. A questão é que, perante a possibilidade real e verdadeira de morrer, perante a possibilidade de executar a nossa própria morte, a vida também nos é dada como escolha. Aí, sim, há uma dificuldade avassaladora, em que muitos preferem não pensar. É a vida como acto puro de liberdade, é o dia como abertura infinita. É todo o sentido e des-sentido que diariamente repensamos e reinventamos. E é a necessidade de criar uma outra ética, totalmente nova, singular e revolucionária.