Sobre as angústias irresolúveis

Sonho CCLXXXIII
 
 
 
Era um daqueles dias em que nada corria como planeado.
 
A meio da viagem, todos os carros ficaram parados.
 
Teria deflagrado um incêndio, uma guerra, uma catástrofe?
 
Tivemos de abandonar os carros, e continuámos a pé.
 
Andámos tanto a pé, que ficámos sem sapatos.
 
Continuámos descalços.
 
Por fim, chegámos a um sítio, uma espécie de café, onde se podia comer.
 
Tínhamos muita fome, mas a comida era repugnante.
 
Não consegui comer nada, e pensei:
 
«Qualquer dia como, mas hoje não. Não é assim tão grave.»
 
Também tinha muito sono, mas não podia dormir. 
 
Não conhecia ninguém e tinha medo de adormecer.
 
Que saudades do meu colchão macio e da minha cama de lençóis lavados!...
 
Enquanto reflectia sobre a precariedade de todos os bens da nossa vida, olhei para o pulso esquerdo e reparei que ali estava um relógio que em tempos perdera.
 
Era um relógio que pertencera a uma querida avó.
 
Também estavam no meu pulso duas pulseiras de ouro que em tempos perdera e que nem me lembrava de ter perdido.
 
«Olha!... Estas pulseiras!... As coisas da nossa vida de que não nos lembramos!...»
 
Ambas me tinham sido dadas por essa avó, quando era ainda uma criança bem pequena.
 
Uma delas tinha uma minúscula figa em ouro, para dar sorte, e a outra tinha pequenas contas de coral rosa.
 
Não conseguia perceber como é que aquelas coisas tinham vindo parar de novo ao meu pulso.
 
Era como se, num livro aberto, na página que mais me interessava, todas as palavras estivessem pintadas de negro.
 
Doía-me esta incompreensão como se estivesse à beira de compreender qualquer coisa que estava condenada a não compreender, e, por causa disto, lembrava-me de todas as coisas da minha vida que jamais chegaria a compreender.
 
Que dia!...
 
Ficamos diante de um mal-entendido insanável, de um golpe e para sempre, como se esse mal-entendido permanecesse insanável por toda a eternidade.
 
É incrível como um dia (que é uma coisa tão curta no tempo) nos pode lançar de um modo tão rude na angústia da imaginação negativa da eternidade.