A única sextina de Camões


A única sextina de Camões tem uma estrutura em borboleta que a Françoise M. usou para "decalcar" o seu primeiro livro, Carpe Diem, Nuvem, e cujas palavras-rima formam esta série notável: 

vida vivo olhos falo passo pena 

O poema move-se com estas palavras-rima que giram dos versos da estrofe anterior para a estrofe seguinte: do último para o primeiro verso, da penúltimo para a segundo e do antepenúltimo para a terceiro, com um ritmo que repete no tempo a simetria que as asas de uma borboleta têm no espaço.

E ergue-se a voz majestosa do grande poeta morto e vivo, que vê sem olhos porque os seus são já porventura os nossos, no corpo partilhado do poema, em que os órgãos (funestamente) transitam:

Foge-me pouco a pouco a curta vida
- se por acaso é verdade que inda vivo -
vai-se-me o breve tempo d'ante os olhos;
choro pelo passado em quanto falo,
se me passam os dias passo e passo;
vai-se-me enfim a idade, e fica a pena.

Que maneira tão áspera de pena
que nunca uma hora viu tão longa vida,
em que possa do mal mover-se um passo!
Que mais me monta ser morto que vivo?
Para que choro, enfim? Para que falo,
se lograr-me não pude de meus olhos?

Ó fermosos, gentis e claros olhos,
cuja ausência me move a tanta pena 
quanta se não comprende em quanto falo!
Se, no fim de tão longa e curta vida,
de vós m'inda inflamasse o raio vivo,
por bem teria tudo quanto passo.

Mas bem sei que primeiro o extremo passo
me há-de vir a cerrar os tristes olhos
que Amor me mostre aqueles por que vivo.
Testemunhas serão a tinta e a pena,
que escreveram de tão molesta vida
o menos que passei, e o mais que falo.

Oh! que não sei que escrevo, nem que falo!
Que, se de um pensamento n'outro passo,
vejo tão triste género de vida
que, se lhe não valerem tantos olhos,
não posso imaginar qual seja a pena
que traslade esta pena com que vivo.

N'alma tenho contino um fogo vivo
que, se não respirasse no que falo,
estaria já feita cinza a pena;
mas, sobre a maior dor que sofro e passo,
me temperam as lágrimas dos olhos
com que, fugindo, não se acaba a vida.

Morrendo estou na vida, e em morte vivo;
vejo sem olhos, e sem língua falo;
e juntamente passo glória e pena.