Hoje a morte

 


Hoje do nada senti 
que a morte
é um leito suave, tão suave
como deve ser o casulo
de que nasce a borboleta.
Foi de repente.
Hoje a morte era um ninho,
ninho de passarinho
ou berço de linho,
sono suave
de que todos os sonhos
gloriosamente
se ausentam.
Foi talvez aquela luz.
Uma luz tão boa.
Parecia ser o fim.
E o fim era apenas
uma forma
de acolhimento.
Que luz seria?
Uma ilusão de óptica?
Eu vi-a, brevemente,
e logo se desvaneceu.
Era uma luz tão quente.
Luz. Lux.
Fronteira entre a aura 
de uma vela e a escuridão.
Mas expandia-se.
Parecia um caminho
e parecia chamar.
Canto mudo.
Canto. Cantus.
Não. A morte
ainda não.
Mas hoje a morte
parecia vir tão suave
como o sono
e aquela luz,
luz dourada e tão ténue,
entrada de outra coisa.
Outro horizonte.
Foi de repente.
De lado nenhum.
Hoje a morte
era tão agradável.
Uma coisa tão boa.
Tão boa como a ideia
de dormir e poder esquecer
tudo o que somos
ao acordar.




Chantilly

Sonho CCC


Na cama, W. Florentine não se vinha apenas uma vez, mas muitas, muitas vezes, o que era uma verdadeira festa. Curiosamente, o seu sémen tinha aquele frisado e a mesma textura do chantilly quando sai do saco de pasteleiro para enfeitar os bolos e que dá tanta vontade de pôr o dedo ou a ponta da língua. «É bom, não é?» - perguntava W. Florentine. Claro que era bom. Entre aquilo e chantilly, não havia hesitação possível.

É nesta paisagem

 

X

É nesta paisagem que penso em ti,
Deus. Florinhas que se erguem nos campos,
estrelas, como altas colunas em templos -
sensação, Deus, de uma visão sem fim.

Vida e morte, casa e ameaça -
estranha solidão acompanhada.
Na natureza muda e sublimada
há uma coisa surda que perpassa -

surda, muda, estrangeiro e negro abrigo
parece ser a natureza, Deus.
Caos subtil, apaixonante e divino,

ainda por pensar, de ti, meu Deus.
Quem poderá perceber o que digo,
quando digo (mesmo sem dizer) Deus?







Porquê? Pergunto ao coração gelado.

 


IX

Porquê? Pergunto ao coração gelado.
Porque ardes sempre tu tão raramente,
demasiado sério e pungente,
coração, e sempre por rumo errado?

Querias até fingir ser outra coisa,
coração. Poeira, nuvem ou pluma.
Querias ser leve ou coisa nenhuma.
Paisagem vã em que nada se ousa.

De que serve, porém, querer que se esfume
tua essência, natureza candente,
absurda, veloz, brilhante e incólume?

O amor desvalido e sempre errante
num só e velho verso se resume.
Erros meus, má fortuna, amor ardente.





Há um fulgor que quero neste ir

 


VIII


Menos. Menos que breve grão de pó
girando em tão estranho infinito.
Estrelas, destino, universo, grito -
coroa de luz que me fazes tão só.

Num dia, temos tudo; noutro, tudo
nos é tirado. Apenas andamos
por aí e coroados andando
de dor mas de espanto sobretudo

perguntamos - e agora, que fazer?
Que fazer com a glória de existir
e a fronte coroada, que fazer?

Indiferença, maldição e porvir,
graça, desejo ardente de viver. 
Há um fulgor que quero neste ir.






Alma incógnita. Em zona interdita




 VII


Alma incógnita. Em zona interdita
nasce o amor que podia ter sido
outra coisa. Deserto, paraíso,
figura atónita - de outra vida.

Zona muda e queda, até chegares.
Que governa sem ser compreendida.
Exige e prega, sem ser atendida.
E escapa. Como ideia de não estares.

Desejo ou simplesmente dor que mói
do tanto que ficou por conhecer.
A alma é cega perante o que dói.

Nem vê, nem sente, nem sabe entender.
Espera sempre mais do que não foi.
Só sonhado - o que não chega a ser.







Soneto #6


Ideia repentina de ser nada.
Como fuzil, tão súbita e estranha,
queda por dentro, vertigem em chama -
pedais e volante, curva de estrada.

Noite diáfana em luz que desliza.
Pontos que dançam. Suaves traçados.
Fundo que assomas por todos os lados.
Chuva brilhante, na estrada que gira.

Estrada, estrada veloz, espécie de espuma.
Morrer é fácil - e então a dor?
Velocidade. Desejo de ser pluma -

o corpo ardente será o que for.
A carne e a consciência... entre uma
e outra - tanto dança, como dor.

Antecâmara

Sonho CCXCIX 


Naqueles dias que então corriam, tudo parecia estar mal e tomar a figura de uma tragédia, mas a partir do momento em que lhe apontaram a ponta do fuzil à testa, bem no meio dos olhos, tudo isso adquiriu de repente um aspecto de paz e felicidade excelsas. Foi forçada a recuar, diante da arma, divisão a divisão, andando de costas, até que se encontrou numa daquelas salas imaculadamente brancas e com um vidro de observação, como se vêem nos filmes americanos, no interior de certos asilos que são também estabelecimentos prisionais. Sabia que estava condenada à morte, mas tudo o que não queria era morrer. Ficou ali, semi-despida, e pôde verificar que atrás do vidro estava um dos três amores da sua vida. Seria possível que ele a tivesse condenado a estar ali, que fosse responsável pelo exército e pelos homens de baioneta? Parecia que não, afinal. Observando melhor, podia verificar que estava inconsciente, semi-despido e como se estivesse entalado entre paredes. Seria R., D. ou F.? Não conseguia distinguir as feições do seu rosto, que eram quase desconhecidas, mas, ainda assim, infinitamente familiares. Como era possível, se o rosto era tão nítido, tão belo, tão jovem e tão definido? Em que tempo estariam agora? Teriam já morrido? Seria a vida depois da morte? Não. Não podia dizer quem fosse. Uma angústia difusa e imensa invadiu-lhe o coração, uma dor que parecia espraiar-se para além das galáxias. Como suportá-la? Com que grito? Afinal ele era louco, tinham-lhe vestido um colete de forças. Estava ali, como um bebé no ventre da mãe, todo encolhido, e parecia prestes a nascer. Deus queira que nascesse, pensava ela, que nascesse rapidamente. Não suportava vê-lo ali. E também não queria morrer. Toda a angústia lhe parecia agora suave e mesmo alegre, comparada com a antecâmara da morte.



 


Expliquem-me só 


Minha casa, minha morte




Regressara a casa, mas a casa estava irreconhecível. Que tinha acontecido? As máquinas tinham sido levadas. As paredes, anteriormente brilhantes e sem manchas, estavam vandalizadas. Faltavam cadeiras na mesa de jantar. Onde estavam as cadeiras?... Na rua?... E porquê?... Porquê tantos estragos, tanta destruição?... As imaculadas portas lacadas de branco, todas riscadas e lascadas, as flores arrancadas, a roupa dos armários espalhada pelo chão, os lençóis rasgados, as loiças partidas... olhava tudo aquilo sem sequer poder verter uma lágrima. Porque cada coisa na delicada casa era um gesto, um gesto de pensamento, de tempo e de amor... Como reconstruir tudo aquilo? Quanto tempo? E o ânimo? Será que haveria ainda força e ânimo para recomeçar tudo de novo? Tudo de novo outra vez?... Ou haveria antes um insuperável cansaço e, para sempre, uma ausência de esperança?... Como parecia de repente tão agradável e suave a morte. Como parecia tão doce e suave poder não sentir, não pensar, não ter nenhuma ideia de futuro. Suave nada. Parecia de repente tão bom simplesmente uma coisa, essa coisa indistinta e suavíssima, sem consciência nem sensibilidade: poder desaparecer como pequena chama que ardesse no escuro e de súbito fosse soprada e consigo levasse a luz para sempre, para todo o sempre.





Presque rien #8

 

Um barco amarelo, um navio vermelho e algumas bóias amarelas sobre o mar.


Breve


Nesta capelinha no Bom Sucesso foi onde fiz a minha primeira comunhão, com rosas brancas nos totós (e no raminho) e umas sandálias de verniz muito apertadas. As rosas eram do jardim da minha avó, as suas flores preferidas. As sandálias eram da minha prima Joana. O vestido era especialmente bonito. Mandaram-no fazer em piquê e bordado inglês, com pequeninas mangas de balão e um laço atrás, lembro-me bem. O meu pai disse-me que eu tinha deitado a língua de fora ao padre. Era bondoso e delicado, aquele padre, o que se vê bem nesta fotografia. Só tenho boas recordações dessa experiência infantil. Ao meu lado está a Sofia, que veio a ser campeã nacional de ténis, a olhar com muita atenção para tudo aquilo. Eu e o meu irmão, felizes, sempre a pensar nas próximas brincadeiras e disparates que éramos pródigos em inventar e que punham à prova a paciência de alguns. Mas foi a minha mãe quem me ensinou a rezar. Todas as noites, em pequena, enfaixava-me numa manta à maneira russa e rezava comigo. Que bom que era e que grande força me deu, na verdade. Sou daquela espécie de pessoas que não podem viver sem Deus. Ou se consomem e dissipam, ou definham... ou se suicidam, os desta espécie. Talvez por isto ame tanto Dostoievski. Não faço parte de nenhuma religião. Deve ser reconfortante ter uma fé comunitária e partilhada, mas nunca me foi possível aceitar nenhuma espécie de dogma, nenhuma narrativa, nenhum movimento geral. Quando tinha nove anos e vi as crianças durante a fome da Etiópia com os olhos cobertos de moscas, na televisão, decidi que não havia Deus. Tive e tenho muitas questões, muitas angústias, conflitos e aporias, muitos becos sem saída, muitos desastres, por assim dizer. O meu caminho não foi e não é a direito. E tenho um horror visceral a clichés, ideias e crenças que parecem ser aceites sem sentido crítico e que avançam nas massas com uma força cega, mecânica, porque observo que este tipo de pensamento pode produzir sofrimento, miséria e, em último grau, loucura. Quanto a isto, acho que a coisa que mais falta é indignação. Poderia escrever longamente a este propósito, mas quero só falar de uma coisa que são as sensações. Certas sensações extraordinárias e maravilhosas, inexplicáveis e magníficas. No esplendor, na natureza toda e nos rostos, tantas vezes sinto simplesmente uma coisa: Deus. Estou bem numa igreja, como à sombra de uma árvore ou no topo de uma montanha, olhando em volta.

Orações a um deus desconhecido


Deus, dá-me força na adversidade. Traz-me paz. Ajuda-me a aceitar a dor e a alegria com a mesma humildade. Ajuda-me a aceitar os desígnios do universo, que não conheço, mas que talvez venha um dia a conhecer. Qualquer que seja o meu destino, dá-me força e dignidade. E que eu possa dar hoje ao mundo qualquer coisa de bom.


Sobre o suicídio


Marx escreve um pequeno opúsculo sobre o suicídio, a partir das notas de Peuchet (1758-1830), um ex-arquivista policial com uma trajectória de vida particular. Este texto em português peca por não separar os comentários de Marx das citações de Peuchet. Mas é possível fazê-lo, por exemplo, nos arquivos online dos trabalhos de Marx em inglês. O que me fascina, na análise de Marx, que considero, como em tantos outros aspectos, visionária, é que ele não aborda o suicídio do ponto de vista de um sintoma da saúde mental, como hoje em dia é um chavão acontecer, mas como produto de um conflito insanável de forças que se estabelecem entre a sociedade, a família e uma pessoa, ou um conjunto de pessoas. Gostaria de conseguir pensar sobre o suicídio, antes de Setembro, escrevendo um "pequeno ensaio sobre a estranheza," a partir da terceira parte de uma frase que ali aparece: «A opinião é muito segmentada por via do isolamento dos homens; é ignorante demais, corrompida demais, porque cada um é estranho de si mesmo e todos são estranhos entre si.»



Parafusos e arremessos


As obras em casa de Anaïs D. não estavam a correr nada bem. Tinham pintado o tecto com a cor errada. Tinham feito um trabalho de relevo no estuque que, para além de ser dispendiosíssimo, era de um mau gosto insuperável. E para quê tudo aquilo? Anaïs D. mandou chamar o chefe da obra, que trazia toda a equipa e inclusivamente o engenheiro. "O que é isto?" - perguntou Anaïs, apontando para uma máquina suspensa perto do tecto. "Um ar condicionado?" Não, não. Nada disso. Aquilo era uma nova máquina da polícia, dada a crise sanitária destes novos tempos, apenas uma pequena máquina de vigilância, bom, não assim tão pequena, mas também não era maior que um ar condicionado, o que era bem verdade, certo? - porque agora saíra uma nova lei e, sempre que houvesse oportunidade, quer dizer, sempre que houvesse obras nas casas e nas instituições, havia que colocar estas máquinas, agora muito úteis e indispensáveis, disso não havia sombra de dúvida, em prol da saúde pública, da segurança sanitária e da sanidade em geral. Não era um ar condicionado, não tinha qualquer efeito sobre a atmosfera da casa, isso não. A sua única função seria vigiar Anaïs, para zelar pela segurança de todos, o que certamente deixaria Anaïs muito feliz, segundo as estimativas de quase toda a gente e principalmente segundo as estimativas de quem tinha decidido assim. A Anaïs que até aí estivera apenas preocupada em corrigir a cor do tecto, demolir o trabalho do estuque e evitar que sujassem o chão com aqueles terríveis sapatos, foi tomada por um tal acesso de fúria que deu por si a dizer: "Eu mesma vou buscar a minha chave de parafusos, eu mesma desmonto esta máquina e verão como irá voar pela janela, num ápice!" Com certeza o seu aspecto seria tão ameaçador como aquele que descrevem os escritores gregos quando consideravam que a fúria era um dom dos deuses. É até possível que lançasse chispas pelos olhos ou que tivesse duplicado de tamanho, de forças ou de velocidade, segundo descrevem esses mesmos escritores. Já estava de chave de parafusos em punho no topo do escadote e aqueles homens todos corriam como ratos pela casa enquanto suplicavam coisas sem nexo nenhum, dizendo que eles mesmos desmontariam a máquina, que isso não era trabalho para uma senhora, que ideia, fazer voar um aparelho tão caro pela janela, e se acertasse em alguém? Não havia nada a fazer, porém. Quando os comboios são colocados em marcha, já não podem parar de repente. Há aqueles que parecem habitar a superfície da vida, com a tranquilidade e a leveza aparente dos pássaros. E há os outros que só sabem cair de cabeça para baixo e pés para cima nos abismos ou então voar entre as estrelas até à liquefacção. Para os primeiros, muitas coisas, mesmo as mais inesperadas, são pretexto para um belo riso, solto e leve. Parecem desconhecer que se pode morrer com um excesso de intensidade, porque as cordas da alma não aguentam ser esticadas para além do limite, e, se por acaso alguma coisa deste género lhes passa pela cabeça como sendo real e existente, a sua reacção é de estranheza. Na verdade, parecem estar sempre num ponto suavemente elástico, tendido e afinado, essas cordas, e desse modo compor aquela dourada mediocridade que pela sua natureza amena e alegre se torna tão atraente e desejável. Mas talvez tudo isto seja apenas a ilusão dourada de quem habita a margem oposta desse plano. Esses, pelo contrário, procuram apenas equilibrar-se nos loups da intensidade como os acrobatas improváveis de um circo atómico ou de uma arena invisível, desdobrada em dimensões incompossíveis e paralelas. E quando riem, a sua leveza não é da mesma qualidade, guarda sempre um grão luciferino. Mas agora tinha deixado de existir a fisioterapia. Nada disso. O que existia agora era a viu-terapia. Uma terapia do que fora visto. Assim, o que fora visto uma vez de uma certa maneira ou de uma certa perspectiva já não poderia tornar a ser visto dessa maneira nem dessa perspectiva. De igual modo, e em prol da sanidade, tratava-se de uma reabilitação da visão. Não da visão do presente, claro. Mas daquilo que no presente sobrava do que em tempos fora visto no passado.

O inferno, a fúria e a ternura


Havia agora um novo tipo de arte, a que chamavam ainda escultura, mas seria realmente escultura? Não era bem uma performance e também não era propriamente uma instalação, embora se aproximasse mais desse segundo conceito do que do primeiro. Como fazer uma descrição satisfatória do que se tratava realmente? Andy, a autora famosíssima de tal novidade e que Anaïs D. conhecia desde a adolescência, tinha agora os cabelos frisados de um modo tão selvagem que parecia ter apanhado um choque eléctrico, mas isso dava-lhe uma graça especial e ia melhor com a sua personalidade alegre e irreverente. Os velhos cabelos ralos muito lisos e colados ao crânio, que lhe davam um ar infeliz e tristemente obediente, tinham passado à história e ainda bem, pensava Anaïs. A escultura era uma sala, uma sala enorme, toda a preto e branco, com volumes inesperados, paralelepípedos, cubos, pirâmides, formas como aquelas que apareciam no antigo jogo do Tetris, todas de tamanhos muito diferentes, sem qualquer escala entre si, e que criavam pequenos recantos por onde se andava, como as paredes de um labirinto. No chão, nas paredes e no tecto também havia quadrados a preto e branco sem escala e muito irregulares, também, e essa ausência de correlação entre os volumes, essa ausência de referência e de escala, digamos assim, fazia com que nos sentíssemos no meio do infinito, totalmente perdidos. O único consolo estava naqueles recantos criados pelos volumes que transmitiam uma pequena sensação de conforto, como de terra ou de casa. Porém, de repente e sem qualquer aviso todos esses volumes foram rebatidos no chão (ou absorvidos, não sabemos) e todos nós, os parcos visitantes, ficámos ali sobre aquele plano a preto e branco e onde os mesmos quadrados sem referência nem escala se replicavam no chão, nas paredes e no tecto. Não há como descrever a angústia indizível nem a vulnerabilidade absoluta que podíamos sentir. Não havia qualquer refúgio, qualquer luta a encetar, qualquer desafio com que entreter a dor e o tempo, nenhum recanto ou abrigo. Nada. Só aquela nudez absoluta diante do infinito. Anaïs D. saiu dali a correr, porque certas intensidades só podem sentir-se durante espaços muito curtos de tempo ou então com recurso aos chamados alteradores de consciência, não apenas o álcool e as drogas medicinais ou ilegais, mas muitos outros que como sabemos são inúmeros e tão engenhosos como fatais. Anaïs cruzou-se com P., que saía de uma casa de banho no museu, olhando para o telemóvel. Talvez porque tivesse sido objecto de uma experiência limite, Anaïs naquele momento olhou para P. e soube imediatamente que ele ia suicidar-se. Tinha de fazer qualquer coisa, tinha de fazer qualquer coisa com a maior urgência, mas nem sequer conhecia P. muito bem e não lhe ocorria nada que pudesse fazer. Sendo assim, e como não sabia o que fazer, Anaïs... pôs-se também a olhar para o telemóvel. As coisas que fazemos!... Tinha uma dor horrível no peito e na garganta, como se estivesse a ser estrangulada por um torniquete, e não conseguia pronunciar nem sequer uma palavra. Queria dizer-lhe: «Já que provámos o cálice, vamos bebê-lo até ao fim, certo?» - como Ivan, nos Irmãos Karamásov. Mas nada lhe saía. P. caminhava para longe de si, certamente em direcção ao seu absurdo e horrível destino, mais absurdo ainda que nascer e morrer sem saber para quê, pelo menos era o que lhe parecia naquele preciso momento. A isto talvez pudesse chamar-se um excesso de absurdo. Qualquer coisa ainda mais absurda que o absurdo. E, tal como o excesso de sofrimento, algo de gratuito e que é  preciso evitar a todo o custo, segundo uma ética intuitiva da preservação e da delicadeza. O que Anaïs sentia no meio daquela clarividência mal-vinda era uma impossibilidade absoluta, uma tortura certamente maior que uma passagem pelas chamas do inferno. Aliás, isso mesmo que ela sentia é que era o próprio inferno, esta dor e a impotência de saber que é necessário agir e não ter como. Então Anaïs foi tomada por uma fúria tão avassaladora que teve o desejo de desmantelar o universo inteiro e que não sobrasse nada, absolutamente nada, nem sequer ela própria. São assim radicalmente paradoxais as paixões humanas, que nos arrastam em menos de um segundo para os dois lados opostos de uma mesma realidade. Alguns segundos antes Anaïs queria apenas salvar P. e, uns meros segundos depois, dispunha-se a fazer aquilo mesmo que a horrorizava. Ainda bem que a fúria não tem um poder imediato em si mesma. De outro modo seria indubitável que o universo se extinguiria inumeráveis vezes, numa velocidade imprevisível. Mas Anaïs quase imediatamente se lembrou das flores, das ervas, das estrelas, das cores, dos animais, das crianças, dos velhos e de tantas coisas que lhe inspiravam uma ternura infinita, uma ternura ao mesmo tempo visceral e abstracta, física e transcendental, e ficou-se ali, olhando P. que partia de costas, imóvel e de braços caídos, sem mais nada que não fosse aquela perplexidade insuportável e suspensa do tempo como um balão de festa, girando na brisa.

Cadernos de notas - diálogos - recortes - insignificâncias (coisas ouvidas aqui e ali)


1.

(Isabel e A. na praia)

- Olha, está-se tão bem. Passaram duas horas e nem se deu por nada. São onze e onze.
- Onze e onze!... Lá está!...
- Lá está o quê?
- Esses números, perseguem-me por toda a parte, toda a minha vida, toda a minha vida.
- Ah... é curioso... a mim também. Onze e onze, vinte e dois e vinte e dois, doze e vinte um, catorze e quarenta e um... a toda a hora, a toda hora.
- Não. A mim é só onze e onze. Onze e onze. E isso tem um significado, sabias?
- Ah sim? Qual?
- Não sei.
- Não sabes?
- Sei que existe um significado, mas não sei qual é.
- Que desilusão. E não te lembras de nada?
- Nada.
- Quem me dera saber!
- Não vale a pena. Acreditas que, se alguém julga que sabe, saberá?

2.

(P. e M., numa reunião de trabalho, dispondo na mesa os seus computadores portáteis)

- Olha, olha, não é que têm dois computadores iguais? - reparou um colega.
- Oh! Oh! Pois é!
- E aposto que a M. também não sabe que o computador tem dois discos.
- Dois discos? A que propósito?
- Tem este, mais rápido, e este, mecânico, mais lento. Exacto. Está vazio. Como o da P. Não sabias que tinhas dois discos?
- Pois não.
- Ahahah!...
- Olha - disse a P. - e os telemóveis, será que também são iguais?
- Olha pois são!... Iguais!...
- Da mesma marca, da mesma série e da mesma cor.
- Iguaizinhos.
- E nós estávamos bem longe de reparar nisso...
- Caramba... que havemos ainda de descobrir?...
- Não eras tu que tinhas a lua em Capricórnio e o ascendente em Leão?
- Era.
- Igual.
- E isso dá dois computadores e dois telemóveis iguaizinhos, na vida prática?
- E sabe-se lá mais o quê...

Teorias, flores fúnebres, amores e desertos


Anaïs D. não conseguia deixar de circular no interior da sua cabeça, isto é, dos seus pensamentos, como um rato na roda do hamster ou como um animal desesperado num labirinto, mesmo sabendo que existem ideias que não devem ser pensadas repetidas vezes e que, ao nível do pensamento, certas repetições constituem um comportamento mórbido, tão perigoso que pode levar ao suicídio, quando menos se espera. Como pode alguém ser ao mesmo tempo tão lúcido e tão louco? Não sabia já Anaïs que, apesar dos pensamentos terem uma espontaneidade selvagem que é difícil conter e dominar, apesar do coração ser, tantas vezes, impossível de domar, mesmo assim os nossos comportamentos ainda pertencem àquele campo onde é possível exercer algum domínio, nem que seja com recurso ao auxílio dos nossos amigos ou de quem nos queira bem, quando as nossas forças se tornam demasiado fracas? Sempre há quem nos ajude a atar uma grilheta ao tornozelo, se nos sujeitarmos a isso, e Anaïs D. já estava naquele ponto em que até seria capaz, se lho pedissem, tal como o jogador no livro homónimo de Dostoievski, de descrever ponto por ponto cada elemento da sua patologia. Poderia até, conforme a disposição do momento, dar um cunho patético, deplorável ou humorístico a essa descrição, mas nem por isso perderia um grama da sua lucidez, se a lucidez se medisse em peso. "Podemos ser bastante irracionais e impossíveis de compreender." - pensava Anaïs. "Mas os monomaníacos são o sal do mundo." O orgulho, aliás, era um dos principais elementos da sua tragédia pessoal. Longamente e com distintos episódios coloridos teríamos de o descrever, se quiséssemos falar de Anaïs num romance. Tinha um carácter indomável e altivo, uma inteligência zombeteira e acutilante. Tirando certas coisas relacionadas com o esplendor, o sublime e deus, as sociedades humanas, desde a infância, tinham para si um aspecto trágico e risível, principalmente no cabotinismo e na forma séria e confrangedora como tantos se dedicavam aos seus papéis, nos quais pareciam acreditar com uma espécie de indiferença costumeira ou piedade fervorosa. Talvez fosse apenas uma farsa que frequentemente se adoptasse por comodismo e educação, e não por fraqueza da inteligência e do sentido crítico, mas Anaïs desde os nove anos que se surpreendia com a fome no mundo, como com as descrições da divina trindade e os projectos de crescimento económico constante que eram propostos em todos os quadrantes políticos. O mundo humano tinha para si uma natureza intolerável, impossível de habitar. Procurava, mas não encontrava nada. Nem nos livros, nem na televisão, nem nas conversas. Anaïs pertencia àquela espécie de pessoas que só podem sobreviver com a perseguição de um novo ideal, mas esse ideal têm de ser elas a criá-lo de raiz, a partir do nada. Já não servem as passagens dos monges pelo deserto, as cruzadas, a inspiração dos mártires, a revolução, nem sequer o activismo. Todas as instituições lhes inspiram repulsa. Está tudo gasto, mil vezes usado e corrompido já. E onde está agora essa grande força para lançar as primeiras pedras de uma nova fundação? Pelo menos o jogador de Dostoievski acreditava que era um elemento de resistência na máquina do capital, e o seu sarcasmo não deixava de ser uma arma contra a hipocrisia reinante. Uma peça disfuncional, digamos, um elemento produtor de caos. Útil, apesar de tudo, como elemento discordante num sistema monocromático e insensato, onde um extra de insensatez acrescenta um pouco de sal, ou talvez uma possibilidade de revolução. Quem sabe o parafuso torto possa fazer saltar a máquina? Mas Anaïs, a que género de revolução inconsciente pretenderia lançar-se? Resistiria ela a quê, com a sua loucura particular? Que género de margem pretenderia habitar? Seriam os da sua raça aqueles que, como Tarkovski, sabem que o amor é toda uma outra coisa absolutamente distinta do que em voga tantas vezes se pratica? Que o amor tem um lado estranho e aterrador, como o planeta Solaris? Talvez como uma natureza viva extraterrestre, que nos ama aos solavancos e com erros? Tarkovski descreve Solaris como um planeta vivo e inteligente, porventura mais inteligente e poderoso que a espécie humana, mas, ainda assim, com uma inteligência finita. Todos estão perplexos, diante de Solaris. Os elementos da tripulação enlouquecem e matam-se. Só sobra um. Ainda que a tripulação da estação espacial que o tinha por objecto de estudo se consuma elemento a elemento com o medo e a teoria de que as intenções do planeta são maléficas, Solaris, que parece decifrar no sono os sonhos dos tripulantes, também não parece querer mais do que materializar os seus desejos, quando transforma os sonhos em matéria viva. Da parte de Solaris, isto parece não ser mais do que um puro acto de amor, ou de simpatia, uma simpatia e amor não-humanos, digamos assim, com resultados tenebrosos. Como poderia Solaris perceber que o grande amor de Kelvin, a jovem Hari, cometera suicídio e que, ao trazê-la dos sonhos de Kelvin para a vida material, animava um morto-vivo, pior que um fantasma? Isto é comum também entre nós, que, com as melhores intenções, tantas vezes acabamos por fazer as piores coisas. Solaris, se era uma inteligência, pensaria? E se pensava, saberia alguma coisa? É possível que duas inteligências absolutamente diferentes se entendam uma à outra? Mas deixando Solaris de parte, uma coisa é certa, em relação a Anaïs. Como ela, todos estes amorosos têm em comum o facto de amarem as pessoas como seres em potência e não em acto. Há, por assim dizer, nesta espécie de amorosos, um engano constante e uma teimosia inquebrantável, com uma natureza muito séria e muito peculiar. É como se eles nunca tivessem os olhos de toda a gente, em relação ao objecto do seu amor, como se tivessem sido extirpados, em relação a isso, de toda a espécie de senso-comum, e de bom-senso também, é preciso reconhecê-lo. Mas os seus olhos não são os de um cego, muito pelo contrário. Inversamente, são mais potentes, mas, como em tudo na natureza, o que é demais, mesmo que seja melhor, tantas vezes ganha um aspecto monstruoso. Como se, para eles, o visível fosse, não a realidade material e factual, mas uma virtualidade candente que existe por dentro ou em potência em todos os seres, prestes a fazer-se e a acontecer, e nem por isso menos real. Por isso talvez tenha sido sempre tão atraente, do ponto de vista da criação literária, o périplo destes amorosos. Quantas páginas de filosofia ou de literatura não teríamos de escrever para chegar à descrição perfeita desta frequente e dramática experiência amorosa? Todos sabemos que a máquina da reprodução social, com as suas tristes e pobres repetições nuas, quase mecânicas, de geração em geração, constitui uma mordaça confortável e nem sempre obviamente infeliz, é um facto. Mas é terrível como se pode chegar a esse ponto de dominar a teoria e a descrição de um determinado assunto com a destreza de um malabarista e a acutilância de um cirurgião e, quanto à prática, simplesmente progredir no caos e no desastre, em direcção ao mais triste dos fins. Era este precisamente o caso de Anaïs D. Seria acurada, a sua visão cristalina? Teria o seu pensamento ido directo em direcção ao alvo? Suicidar-se-ia? Contra tudo o que sabia ser necessário fazer, dirigiu-se à nova casa de Wilson Florentine, onde se desenrolavam os preparativos do seu casamento. Tratava-se apenas de mais um elemento a acrescentar à sua tortura particular, talvez aquele que lhe desse por fim a coragem para se atirar de um precipício ou da ponte sobre o Tejo. Para quê? A casa era linda e com uma bela vista sobre o rio. Havia espaço e conforto para todos os filhos. Tudo resplandecia num doce ambiente de festa. A noiva recebeu Anaïs D. com as enigmáticas palavras, de significado bastante ambíguo: "Havemos de nos entender." "Jamais." - pensou Anaïs com os seus botões, não sem antes dar uma vista de olhos por toda a casa, para bem da longa vida do seu inferno pessoal. Wilson estava na cozinha, a preparar as entradas da mesa de festa, e Anaïs saiu sem querer olhar para ele. "Quem era?" - perguntou Wilson à sua noiva. Ela disse qualquer coisa e Wilson deu uma corrida em direcção às escadas, mas parou a meio, arrependido. Anaïs corria já com grande velocidade no final das escadas, perguntando-se: "Para quê?... Para quê?..." Porque, até chegar ao fim da sua narrativa, isto é, da sua vida, nem sequer o lúcido sabe porque age, e, esta é que é a verdade: talvez nunca ninguém venha a sabê-lo. Uma teoria de causa-efeito nunca deixará de ser a ilusão de um belo remate, como uma coroa de lindas flores fúnebres sobre a nossa campa, à laia de consolação.

Volvos e piscinas


M. tinha um Volvo de 1980, enorme, uma verdadeira banheira. Íamos os dois para a piscina, uma piscina de água quente que era famosa pelas suas ondas imprevisíveis e por encher e esvaziar de repente. Eu estava numa grande excitação e comprava uma peça de roupa, uma peça de roupa muito gira que condizia com as outras duas que tinha vestidas, o fato de banho e os calções. Que alegria! M. dizia que isso tinha um nome, e dizia o nome. Que nome seria? Ouvi-o no sonho com nitidez, mas agora que escrevo não consigo recordá-lo. Até existe um nome para o facto de uma peça nova condizer com duas antigas? Isto é que jamais seria capaz de imaginar. Que sofisticação. M. era um escritor português contemporâneo famoso pelo seu prolífico vocabulário e talvez a única pessoa viva que ainda me obrigasse a ir ao dicionário, pelo menos com tanta frequência. Estava a enjoar no banco de trás. Então, como uma miúda, trepei pelas costas do banco da frente para passar para o lugar da frente, ao lado de M. Muito melhor!... O carro estava em andamento, mas não havia polícia. 

Carros e pilecas


A minha mãe agora tinha um Porsche descapotável que queria a toda a força que eu conduzisse, só para dar uma voltinha. Mas eu não queria conduzir o Porsche, preferia de longe a minha pileca. A minha mãe porém insistia e dizia-me que eu não podia continuar pela vida fora sempre com o mesmo temperamento tão rebelde. Há um limite para a extravagância e para a rebeldia, dizia ela. Qual é o problema de dar um voltinha, ir até ao Guincho e voltar? Um belo passeio, só isso, e sempre ficas a saber o que é conduzir um verdadeiro carro. Para minha desgraça e contra a voz da minha intuição, lá acedi a dar uma voltinha no Porsche, esse símbolo de tudo que desprezava, só para fazer a vontade à minha querida mãe, que já tanto sofrera por causa desse feitio intratável, segundo o descrevem. Pois não é que me estampei mesmo com o Porsche? Eu que nunca tivera um acidente com a minha querida pileca, em quinze anos! Que infelicidade. A vã vaidade e acima de tudo a complacência, contra a intuição, nunca deixam de dar os piores resultados.


Suportar os privilégios


Estava de férias numa casa agradável, na Riviera, que tinha um belo piano de cauda onde se podia tocar. Tocava ali muitas horas e como gostava tanto de lá estar, decidia passar lá mais uns dias. Saía e, quando regressava, podia ver que fora tudo impecavelmente limpo. A casa na verdade tinha muitos mais quartos do que aqueles que precisava. As camas impecavelmente feitas estavam abertas com um uma pequena dobra, familiar, acolhedora e convidativa. Cheirava tudo a lavado e havia nos pormenores sobriedade, requinte, delicadeza e um bom-gosto invulgar e agradável. Porém, o velho piano de cauda tinha desaparecido e, no seu lugar, estava um outro instrumento musical. Se fosse um clavicórdio, como parecia, valeria a pena passar ali mais uns dias. Mas era um daqueles pianos para crianças, muito maus, que dizia Kinder Piano e cujas teclas produziam um som horrível - tléc, tléc, tléc. Com grande desapontamento, comecei a explorar melhor a casa, coisa que ainda não fizera, apesar dos dias agradáveis que lá passara. Não precisava daquele espaço todo, nem de tantas salas e camas, nada. No fim da casa que descia em patamares brancos e arejados por uma espécie de encosta  solarenga, estava um buraco, um exíguo buraco encarvoado onde vivia uma família com quatro crianças, seminuas, esfomeadas, sujas e descalças. Fiquei a olhar para aquilo em estado de choque. Parecia um quadro da revolução industrial. A senhora era quem limpava a casa, e eu dizia-lhe: "Não preciso daqueles quartos." "Ai." - suspirava ela. "A nós bem que nos davam jeito!..." Nada daquilo era meu, para que o pudesse oferecer, mas de repente senti uma vergonha horrível por dormir naquelas camas de suaves colchões de penas e macios lençóis de linho bordados, com aquelas pessoas, ali, a sobreviver em buracos fuliginosos. Não ia conseguir gozar nem mais um dia de férias, todo o meu prazer se fora. Alastrava em mim um nojo de todas essas coisas confortáveis e finas, paredes meias com tanta penúria. Como se vive do lado da abundância, com a miséria dos outros marcada a ferro na alma?

Sobre o esforço que implica voar


Afinal, éramos santos e podíamos voar, mas, apesar da nossa santidade, voar não era uma coisa fácil. Tínhamos por dentro uma espécie de motor que nem sempre funcionava. Esse motor fazia lembrar aqueles carros que quando não arrancam têm de ser empurrados. Assim era. Por cima da cidade em ruínas, por cima das casas em cinzas, nós voávamos, talvez para nos salvar. Salvar do quê?... Dos erros e de tantas tentativas goradas de alegria?... De sermos menos que essa promessa com que chegáramos à vida?... Voávamos com esforço, correndo com dor e um aperto na garganta, para tomar balanço. No meio da devastação, as minhas vestes eram longas, brilhantes, brancas e azuis, entre o céu e as nuvens, as minhas roupas eram tão suaves, brilhantes e fantásticas como as túnicas dos ícones que por vezes se vèem nos templos.




Trégua


Tinha dois animalzitos na mala, muito pequenos. Que animais seriam? Pareciam ser daqueles que as crianças adoram com paixão, desvelo e alegria. Gatitos, coelhos, ratinhos da Índia? Não tinha maneira de ver porque atravessava um enorme abismo, numa ponte. Mas não era uma dessas pontes antigas de lianas. Era uma estrutura frágil, composta por pequenas grades e ferros, qualquer coisa muito mal improvisada e instável. A razão porque me tinha metido ali, naquele sítio tão perigoso, era algo que desconhecia. De repente, toda a estrutura abanou, e fiquei totalmente imóvel com o terror. Gritei, mas, quem estava a ver, riu-se. Não havia maneira de obter socorro. Não conseguia dar meia volta, por isso comecei a andar em marcha atrás, como se fosse um carro. A cada passo a estrutura cedia, caíam bocados, e era impossível ouvir o ruído que faziam ao cair, de tal modo o fundo era distante. Avancei passo a passo, de costas, em silêncio total, agarrando a mala com toda a força, para salvar os animaizitos. Quando cheguei ao fim, estava em chão firme, mas tinha a mesma sensação de queda e vertigem, como se estivesse na ponte. Não conseguia parar de gritar. "Agarrem-me!" Era o que gritava, repetidamente. Precisava que alguém chegasse e me segurasse nos braços, para exorcizar aquele terror, mas, com o medo do contágio da nova doença, ninguém fazia isso. Todos passavam ao largo. Gritei durante muitas horas até não ter voz e ficar num tal estado de exaustão que caí de joelhos e adormeci de cansaço ali no chão, ali mesmo onde estava.




Corpo - matéria e fibra de universo





Corpo – matéria e fibra de universo,
átomos, linhas finas e partículas,
abismos e clareiras infinitas,
resto de estrela ou de poeira em verso.

Ser tocado não é só ser tocado,
mas é ser abalado noutro espaço,
imponderável, subtil e sem traço –
coisa dormindo em sono abismado.

Nem carne, nem espectro, nem coração.
Que cordas ressoam quando te oiço?
Conheço de cor as notas que acordam

as pradarias por dentro do corpo.
Que desertos? Que infinitos aguardam
ser tocados por dentro como em esboço?

Soneto #4




Se uma paixão dissesse a sua causa
e fosse, em vez de um triste hieróglifo,
mais simples e transparente que um grito -
certo é que o caos nunca teria casa.

Nem casa, nem fulgor, nem velocidade
para o caos que faz voar em cascata
em rodopio de folhas e de cartas
o sentido das coisas estabelecidas.

Nada. Nada. Desse rastilho ardente
e que faz vibrar as cordas sombrias
de um corpo rarefeito e mais pungente

nada sobraria. Nem mesmo angústia,
nem mesmo pó, queda ou voo ascendente,
nem sombra de mundo - breve luz fria.


Soneto #3



Quem nos dera que o amor não doesse
mas apenas florisse, tão suave
como diáfano de cor ou frase
que em vítrea Primavera jubilasse.

Alegria tão breve e que demora -
onde estás?... Onde estão esses planaltos
do prazer fluído e sem sobressaltos
e do indizível que não tem hora?

Tão estranho amor que dói e acontece
 e sem razão suaviza os caminhos.
Estepe de Verão. Tapete que floresce.

Brandura dos vazios desaparecidos.
A suavidade e o velho deserto
coexistem, absurdos e floridos.

Se pudéssemos avançar no tempo das nossas vidas e, quem sabe, usar um chapelinho com véu


Anaïs D. conhecera um rapaz simpático, que parecia muito encantado com a sua presença. Anaïs observava os seus traços finos e agradáveis, o seu ar distinto, e pensava: "Era tão bom que me apaixonasse!..." Estava cansada de viver intermitentemente o mesmo amor impossível ao longo de vinte anos, de um modo por vezes inconsciente, outras involuntário. Mas nada. O seu coração não vibrava. "Que estranho órgão, este!..." Entrava na casa desse rapaz, que era muito pobre. A sua casa tinha apenas duas divisões e nenhuma janela. Numa das divisões estava a sua cama e na outra a cama dos pais que tinham tido recentemente um outro bebé. Anaïs não dizia nada, mas pensava nas condições duras em que vivem tantas famílias. "Uma vantagem desta crise é que os preços das casas pelo menos vão baixar." - comentou. Era um comentário bastante infeliz, mas os preços das casas tinham-se tornado escandalosos. O rapaz olhou para ela como se estivesse a falar numa língua estrangeira. Porque, sim, hoje em dia para um certo senso-comum parece natural que um gang de assaltantes de bancos à pistola seja preso, mas não parece natural que haja regulamentação dos preços no mercado. Como se para o senso-comum a natureza da flutuação dos preços nos mercados fosse e tivesse de ser intrinsecamente fora da lei (como o estado do tempo), quando na verdade essa é apenas uma conquista do liberalismo económico, sustentada e defendida por certos interesses e actos de fé. "Mas os preços não têm de ser como os dias de sol e de chuva e andar ao sabor de regras não humanas." - disse Anaïs D., enquanto entravam os dois num centro comercial que tinha um chão tão escorregadio que dava para patinar com os próprios sapatos. Era fantástico. Começaram a patinar. Toda a gente patinava por ali. Às duas por três a Anaïs caiu de rabo e foi a patinar de rabo no chão até chegar a uma balaustrada de onde caíam muitas pessoas, por não conseguirem controlar bem a velocidade da patinagem. Viu uma senhora a dar uma grande cambalhota no ar e a cair. Mas em baixo havia uma corrente de águas transparentes com muitas cascatas onde circulavam equipas de pronto-socorro em motas de água, dado o elevado número de pessoas que ali caíam. Também havia outras equipas de desinfecção das águas, com barcos munidos de mangueiras. "Muito bem organizado." - pensava Anaïs que entretanto com a velocidade que ganhara também levantara voo sobre a balaustrada e caíra. Anaïs nadou durante algum tempo nas águas transparentes até que chegou a um local seco onde se pôs de pé. A seu lado estava uma velhota muito aprumada, com um chapelinho de véu e uma expressão tão inteligente e imperscrutável como a da rainha de Inglaterra. "Nem sequer a maleta lhe caiu." - pensou Anaïs, observando a maleta preta que trazia no braço. De repente, Anaïs D. apercebeu-se que à frente de ambas se aproximava uma onda enorme. "Aaaaah!... Aaaaaah!..." - gritou Anaïs, enquanto a velhota permanecia imperturbável. A onda chegou, mas não era mais que uns respingos, uns respinguitos muito suaves. "Era só isto?... Era só isto?..." - repetia Anaïs, perplexa. A velhota permanecia imperturbável, com o seu chapéuzinho e a maleta. Não há dúvida de que estavam as duas lado a lado, mas a segunda levava um grande avanço.

Presque rien #2




25 de Julho de 2018

Presque rien #4




8 de Março de 2020

Crianças 15

(Isabel, de nove anos)



- Ó professora, faça lá a Rainha de Copas da Alice no País das Maravilhas, para o Santiago ver...

A professora, de dedo em riste e colocando a voz de modo a poder ouvir-se do outro lado do convento:

- CORTEM-LHE A CABEÇA!

A Isabel, perfeitamente maravilhada:

- Estás a ver, Santiago? Agora imagina, imagina só que a professora era mesmo a personagem, hem?



António Pizarro - Ínfimas notas sobre a morte, para uma outra escrita





É inegável: a morte é o limite da experiência. A morte, só conhecemos a dos outros. E a vida (assim como a morte) são-nos dadas como acontecimentos. Este acontecimento extraordinário da existência, como pensá-lo? Nunca conseguiremos pensá-lo, na sua totalidade. Poderemos dedicar a isso uma vida inteira, escrever centenas ou milhares de páginas - mil vidas não chegarão para explorar e dissecar todas as vias possíveis do pensamento. Uma oportunidade infinita. A vida é um mistério absoluto, que nos obriga sempre a pensar infinitamente, todos os dias. Recomeçamos inúmeras vezes, mas, no fundo, nunca recomeçamos. Partimos sempre do meio, nunca do princípio. Tentamos desfazer os estratos, as crenças, os lugares-comuns, as vaidades, as casas que nos abrigam e as ideias confortáveis que são tão atractivas mas que, por dentro, cheiram a inferno e a podre. Pensamos infinitamente, em múltiplas direcções. Muitas não conseguimos agarrá-las, são como sonhos esquecidos. Vamos por aqui, vamos por ali. Escrever é a nossa máquina de pensar. Uma máquina rudimentar e libertária. Ao escrever podemos ir muito devagar. Abrandamos de um modo inimaginável. Voltamos atrás, cortamos, dividimos, avançamos. Temos assim muitas lentes de aumentar e diminuir, para as nossas visões. Uma máquina de fazer zooms. Ampliamos a consciência para franjas e zonas cada vez mais difíceis, mais obscuras. Mas há uma coisa inegável, sobre a vida. Se a vida nos é dada, se a vida é um dom maravilhoso e absoluto e, em última análise, imperscrutável, ela não nos é dada como fatalidade. Poderá constituir, por si mesma, um mistério total. Poderá ser opaca, esplendorosa, infernal e avassaladora. Obrigar-nos continuamente a pensar em Deus, porque aquilo que sentimos nem sempre conseguimos traduzi-lo por palavras e porque há uma experiência do amor, do esplendor e da dor que nos lança continuamente em Deus. A vida poderá ser difícil e desafiante, como uma prova transcendental. Divina e sublime, em toda a sua infinita delicadeza e pluralidade. Surpreendente até ao último grau da nossa faculdade de imaginação. E poderá ser tentador pensar na sua anulação como um alívio para o excesso de intensidade e para a violência. Uma saída, no limite do desespero. Mas isso é toda uma outra discussão, que implicaria saber o que fosse a morte. A questão é que, perante a possibilidade real e verdadeira de morrer, perante a possibilidade de executar a nossa própria morte, a vida também nos é dada como escolha. Aí, sim, há uma dificuldade avassaladora, em que muitos preferem não pensar. É a vida como acto puro de liberdade, é o dia como abertura infinita. É todo o sentido e des-sentido que diariamente repensamos e reinventamos. E é a necessidade de criar uma outra ética, totalmente nova, singular e revolucionária.

Cadernos de Bernfried Järvi - de Rui Manuel Amaral





Este livro começa e acaba com duas citações eloquentes. A primeira, de Erik Satie, datada de 1922, diz o seguinte:

Chamo-me Bernfried Järvi como toda a gente.


A última, de Vincent Van Gogh, data de 1888 e diz assim:

No meu quadro Café Nocturno, tentei exprimir que o café é um local onde se pode cair em desgraça, enlouquecer, cometer crimes. Quero dizer, em contrastes de rosa tenro e de vermelho-sangue e borra-de-vinho, de verde Luís XVI suave, e veronese, a contrastar com os verdes-amarelo e os verdes-azul duros, tudo isso numa atmosfera de fornalha infernal, de enxofre pálido, tentei exprimir como que o poder das trevas de uma taberna. 

E contudo, sob uma aparência de alegria japonesa e a bonomia do Tartarin...


Que o narrador e personagem principal deste livro se chame Bernfried Järvi (como toda a gente) é de certo modo tão paradoxal como natural, à boa maneira do subtil e perspicaz Erik Satie. Não é que alguém se chame qualquer coisa como toda gente. Não é que alguém tenha um nome como toda a gente. Mas que seja homo tantum (homem apenas, homem só) - como toda a gente. Bernfried Järvi, esse discreto e quase imperceptível monomaníaco do amor que deambula, entre excêntricos companheiros com nomes improváveis (ociosos, pregadores, poetas, semi-loucos, filósofos e visionários), nas franjas de um niilismo singular, do seu quarto, para o café, para o escritório, em Aachen, cidade alemã de cujos quatro ponto cardeais saem quatro estradas - e a mais longa termina, não por acaso, no Porto.

Haveria muito a dizer sobre este livro. Sobre os retratos minuciosos e surpreendentes da atmosfera, tão vivos como a preciosa enumeração da lista de cores na citação de Van Gogh; sobre as descrições do pó e a sua articulação com os relatos de sonhos. Muito haveria a dizer sobre Pagreus, Milo, Helmut, Else, Marcus, Heike, Vanhelle e todos os habitantes do café que flutuam numa atmosfera de fornalha infernal, de enxofre pálido - e sobre o seu desespero, humor ácido, niilismo, extravagância e fervor - a que a escorreita prosódia teatral faz juz.

Mas ocorre-nos um pequeno artigo de Deleuze, intitulado "A imanência: uma vida...", datado de Setembro de 1995. Um curto texto de quatro páginas e o último publicado pelo autor antes do seu suicídio. Neste texto, Deleuze procura explicar o conceito de campo transcendental, que se distingue da experiência (na medida em que não reenvia a um objecto, nem pertence a um sujeito). Esta formulação, que pode parecer opaca, descreve algo de vivo, concreto e real, ainda que difícil ou talvez impossível de pensar. Não cabe aqui a explicação minuciosa destes termos que implicam uma passagem detalhada por Espinosa e pelo conceito de representação empírica. Mas um campo transcendental, entendido como puro plano de imanência, não tem forma mais directa de ser compreendido do que percebendo que a pura imanência é uma vida - "uma vida, e nada mais. Uma vida como imanência absoluta, potência, beatitude completas", diz-nos Deleuze. E o exemplo vem de Dickens, do terceiro capítulo do romance Amigo Comum:

O que é a imanência? uma vida... Ninguém melhor que Dickens descreveu o que é uma vida, tendo em conta o artigo indefinido como índice do transcendental. Um crápula, um mau tipo desprezado por todos, é trazido às portas da morte e eis que aqueles que o cuidam manifestam uma espécie de impressão, de respeito, de amor pelo mais pequeno sinal de vida do moribundo. Toda a gente se empenha em salvá-lo, ao ponto de, no mais fundo do seu coma, o vilão sentir qualquer coisa de suave a penetrá-lo. Mas, à medida que regressa à vida, os seus salvadores tornam-se mais frios e ele recupera toda a sua grosseria e mesquinhez. Entre a sua vida e a sua morte, há um momento que não é mais do que uma vida jogando com a morte. A vida do indivíduo deu lugar a uma vida impessoal e contudo singular, que liberta um puro acontecimento livre dos acidentes da vida interior e exterior, quer dizer, da objectividade e da subjectividade do que acontece. «Homo tantum», do qual toda a gente se compadece e que alcança uma espécie de beatitude. É uma hecceidade, que não é mais de individuação, mas de singularização: vida de pura imanência, neutra, para além do bem e do mal, porque apenas o sujeito que a incarna no meio das coisas a torna boa ou má. A vida de uma tal individualidade desaparece em proveito da vida singular imanente de um homem que já não tem nome, se bem que não se confunda com nenhum outro. Essência singular, uma vida... Não se deve conter uma vida nesse simples momento onde a vida individual defronta a morte universal. Uma vida está por todo o lado, em todos os momentos que atravessam este ou aquele sujeito vivo e que medem tais objectos vividos (...)*


Custa-nos interromper a citação, quando este texto extraordinário de Deleuze daria ele mesmo para escrever muitas páginas, a propósito de cada uma das suas frases. É como uma grande árvore de cujos ramos podem nascer muitos frutos. Precisamente no reconhecimento desse homo tantum, no encontro com esse homem apenas (homem só), porque é que uma espécie particular de amor acontece? O exemplo de Dickens serve como ponto de partida para um reconhecimento. Mas esse ponto de partida passa por uma espécie de amor peculiar - a compaixão. Outras formas de amor poderiam ser investigadas, como momentos de reconhecimento desse homo tantum - como acontecimentos dessa visão ardente, ou como formas de epifania, diríamos nós. Todo um novo evangelho se poderia escrever - qualquer coisa de revolucionário. Não é afinal possível que cada forma de amor em estado puro não seja mais do que um acontecimento dessa visão pontual e extraordinária? A marca desse encontro transcendental e dessa passagem para um plano de imanência, onde os estratos se libertam? Paixão em estado selvagem, compaixão, caritas, filia, eros em osso. Neste romance, não é por acaso que o grande acontecimento do enamoramento de Bernfried Järvi por Else é descrito como um grande arco de esperança e desilusão. Ainda que um humor feroz cerque o fervor de cepticismo, há uma inocência e uma candura que sobrevivem, com uma tímida chama, mas notável. Será que em toda a paixão é esse homo tantum que nos acontece amar, como que numa visão esplendorosa que é, por si só, já um acontecimento? Uma vida. Bernfried Järvi deixa-nos esta suspensão, este vazio, este fervor e esta perplexidade. Esta trança obtusa entre o entusiasmo, o cepticismo e o terror. Uma vida que simplesmente passa com o seu excesso, os seus tempos flutuantes, as suas observações dispersas, singulares, brilhantes ou imprevistas; e os seus assombros, lucidez, entusiasmo e indiferença. O seu absurdo. O seu humor acutilante e desesperado.

«Adeus, meu pulmãozinho, adeus, meu fígado, adeus, meu estômago, adeus, meu joelhinho branco como a neve. / Fiquei a vê-la afastar-se, até desaparecer de vista. / Caiu um aguaceiro repentino.»**




* Gilles Deleuze, Deux Régimes de Fous, Textes et Entretiens 1975-1995, Édition préparée par David Lapoujade (Paris: Les Éditions de Minuit, 2003), pp. 361-362, tradução minha.

** Rui Manuel Amaral, Cadernos de Bernfried Järvi (Porto: Livraria Snob, 2019), pp. 104-105.

Diferentes tipos de morte

Sonho CCXCIX



Anaïs D. fora dar um passeio com P.

P. primava pela elegância e por um tipo de beleza viril e discreta, não pela conversa.

Que teria visto no seu livro, ao ponto de pedir para se encontrarem?

Parecia um homem conservador e com ideias reaccionárias, esclerosadas de tão usadas.

Teria lido o livro?

Anaïs surpreendia-se muito ao observar que a coisa que mais a atraia, e a única, nesse homem elegante e simpático, eram os seus três filhos pequenos e o olhar inteligente dessas crianças, invulgarmente gentil e um pouco triste.

Tinham dado um passeio para visitar uma capelinha no alto de um penhasco, com um alpendre sobre um abismo.

Chegados aí, Anaïs sentiu aquela familiar atracção pelo abismo, e pensou que fosse cair.

- Vou cair!... - gritou Anaïs.

P. lançou-se para Anaïs com a intenção de a salvar e caiu no abismo, mas Anaïs equilibrou-se e não caiu.

O abismo sobre o mar era altíssimo.

- Meu Deus... - pensou Anaïs - Como poderei ficar aqui sem fazer nada, a olhar para a queda de uma pessoa que tentou salvar-me?

E lançou-se também no abismo.

Enquanto caíam, Anaïs percebeu que estavam ligados por uma corda.

- É melhor tirar os sapatos. - pensou Anaïs - Assim hei-de conseguir nadar melhor. Também devia tirar a roupa, mas não sei se tenho tempo.

Anaïs tirou os sapatos que eram especialmente bonitos, todos em pele e bordeaux.

- Uns sapatos tão caros, todos em pele. - pensou Anaïs.

Nesse momento, Anaïs percebeu que conseguia suspender-se no ar, como se voasse.

- Afinal não valia a pena ter tirado os sapatos. - pensou Anaïs.

P. tinha caído no mar, mas não vinha à tona.

- Que se passa com ele?

Anaïs puxou-o com a corda e arrastou-o até uma pequena enseada.

Que colinas verdejantes e tão bonitas rodeavam aquele mar e os penhascos!...

- Tu sabes voar? - perguntou P. a Anaïs.

- Parece que sim.

Anaïs soltou uma sonora gargalhada.

- Mas não vou verificar outra vez se sei ou não sei!...

- E onde estão os teus sapatos?

- Descalcei-os para nadar melhor, mas afinal não foi preciso.

- Deve ter sido por isso que não consegui nadar. - disse P. - Estes sapatos...

E, olhando para os seus sapatos, olhava também para Anaïs com uma expressão de perplexidade, como se ela fosse um animal de outra espécie.

Anaïs podia ver no seu rosto que ele tentava fazer com que ela encaixasse numa das suas ideias do que poderia ser uma mulher, e ela não encaixava em nenhuma.

É também uma espécie de solidão, encontrar essa tentativa num rosto.

Anaïs sabia que esse seria o seu último encontro com P.

O coração dela parecia um instrumento morto.

Nenhuma corda vibrava.

Todos nós temos medo do vermelho, amarelo e azul - de Alexandre Andrade






Mais uma vez, somos brindados com a surpreendente leitura de um livro de contos do Alexandre Andrade, desta feita um conjunto de histórias quotidianas e peculiares sobre o que podemos chamar o poder das cores. A força e o caos com que podemos ser afectados pelas cores, não só através de uma arte a que nos habituámos chamar pintura, mas também pelas cores em si mesmas, como acontecimentos da nossa vida íntima e plural, organizam de um modo singular o elenco deste conjunto de onze pequenas histórias em cujo domínio Alexandre Andrade se revela mestre.

Saindo de uma inauguração de uma exposição de pintura no Bairro Alto, André, submerso ainda no abalo que lhe causou a visão dos quadros e depois de uma conversa inusitada e cordial com aquela que nem sonha ser a autora em carne e osso das obras em causa, toma a decisão, que não tem forças para realizar, de mudar radicalmente de vida, terminando imediatamente a relação em que está. Impedem-no os amigos comuns e as amigas, mas fica desta descrição o equivalente a uma travessia do deserto, uma entrada no caos, uma desagregação que atravessará o livro de uma ponta à outra, como essa imperceptível mas constante vacilação de nós todos, personagens, artistas, leitores e gente fora do livro, entre uma decisão e outra, entre uma vida e outra, entre a vida e a morte. 

Como noutros livros de Alexandre Andrade, os personagens estão sempre à beira de qualquer coisa que por vezes acontece, mas que dificilmente acontece. Uma decisão, uma ruptura, um encontro, uma mudança, um ajuste de palavras, uma declaração de amor, a morte. Toda uma agitação e tormenta interiores que no quotidiano se vertem essencialmente em gestos inócuos, mudos, inexpressivos e surdos, para, de um modo raro e extraordinário, poderem por vezes assumir o aspecto de um acontecimento. Como a rapariga que extrai do corpo, num esforço invisível de liberdade e revolta, numa rua de Lisboa, uma cópia de si mesma: esse "fardo precioso".

«Naquela rua de Lisboa, comigo parada no meio do passeio, sucedeu então mais uma coisa estranha a somar às demais daquele dia quase prodigioso. Mentalmente, fiz um gesto que consistiu em estender um braço fabulosamente longo e flexível, dobrá-lo de volta na direcção do meu corpo, e extrair, não sem violência e efusão de sucos vitais, uma cópia de mim mesma, admiravelmente maleável e capaz de se conformar, a pedido, a qualquer expectativa que alguém pudesse alimentar a meu respeito. Tudo isto foi, bem entendido, invisível. Para os cidadãos que passavam por mim, eu era uma rapariga especada, com tempo para cismar. Com o meu fardo precioso debaixo do braço, encetei o caminho de regresso ao meu quarto arrendado. It is the cause, it is the cause, my soul.» (1)

Qual a fronteira entre a arte e a vida? Como as separamos uma da outra? «O labrego que salta para o palco e arremete contra Otelo no preciso momento em que este se lança sobre Desdémona para a assassinar tem todas as razões do mundo para agir desta maneira. Quem ousaria censurá-lo?» (2)

Neste sentido, há um forte fio condutor, ainda que subliminar, entre os diferentes contos. É a aventura do quadro de Barnett Newman, Who´s Afraid of Red, Yellow and Blue III, que, no dia 21 de Março de 1986, foi vandalizado com um x-acto por um pintor abstracto desconhecido, Gerard van Bladeren, no Museu Stedelijk, em Amesterdão. 

Que nos diz, logo nas primeiras páginas, a convocação deste crime passional?

O pintor B, em coma induzido no hospital de São José, depois de cair do alto do enorme escadote em que pintava, ouve tecerem-se em torno de si e das suas obras as conversas de filhos, ex-mulheres, amigos, familiares e actual mulher. Arriscou-se demais no esforço de pintar aquela oval, aquela cor, e a consequência, neste caso, oscila entre o maior prosaísmo e a maior grandiosidade de toda a vida humana, o amor de todos os que amamos ou em tempos amámos, e a morte.

Duas mulheres, viajando a bordo de um avião a novecentos quilómetros por hora, descobrem que um quadro de Pierre Bonnard presidiu a uma das viagens e encontros mais incompreensíveis das suas vidas, numa coincidência inimaginável e impossível de explicar. Só por esse quadro se descobrem unidas, do mesmo modo que se descobrem, como nesses momentos de rara e dolorosa lucidez que todos já experimentámos, suspensas sobre o abismo de nada saber sobre o sentido da vida, paralisadas nessa encruzilhada das mil incertezas e de todas as perguntas que nunca hão-de ter resposta.

Bianca, que tenta um auto-exame sistemático nas viagens de metro para o seu trabalho de optometrista, apesar de saber que não há maior felicidade do que ler poesia enquanto caminha ao ar livre, e apesar de hesitar em perseguir qualquer felicidade, na rotina um pouco inerte dos seus dias, questiona-se se as cores realmente nada significam, quando parecem trazer uma mensagem de vida ou de morte.

Tom sofre de cromofobia, o que lhe pode causar tonturas, ansiedade, náusea, taquicardia... e um incrível (e incompreensível para todos) rol de desculpas para não trabalhar naquela edição de imagens a cores.

A menina América morre num acidente de metro, nessa paleta de sangue, «com as suas tonalidades impossíveis de serem confundidas com outras», depois de arrematar em leilão Dans le Bordonnement I, de Tal-Coat?...

De onde caíram os confetti coloridos do azul omisso no famoso quadro de Vlaminck, A Paisagem de Outono, e que agora estão sobre os ombros radiantes de Z e Hugo, o casal reconciliado e aureolado pela mesma cor do quadro que originara a disputa e as agressões quase fatais entre um e outro? O miserável narrador do conto volta mais a este episódio do que a todos os do resto da sua vida, aos quais o distanciamento não traz como bónus a capacidade de hierarquizar, nem a importância, nem o alcance. (3)

No final, um homem que entrega a gestão de uma empresa em queda irreversível a uma criança rasga com uma faca a reprodução do quadro de Barnett Newman, Who´s Afraid of Red, Yellow and Blue III.(4)

Afinal, que nos diz a convocação deste crime passional?

Muito se poderá pensar por aqui neste livro sobre a força e o caos com que as cores nos atingem.

«Pierre Bonnard é daqueles pintores que, na fase final de uma vida e carreira que foram longas e prolíficas, retratava os objectos, pessoas e paisagens do seu quotidiano com uma simplicidade aparente que parecia por vezes confinar com o desleixo, ou até sugerir alguma regressão no talento. Nada mais longe da verdade. A aparência quase tosca de todos (e foram muitos) aqueles interiores domésticos, auto-retratos, nus, naturezas-mortas, paisagens, a impressão de incompletude, a ambiguidade na articulação dos planos, as intrigantes escolhas cromáticas, eram o estádio derradeiro e esplendoroso de um percurso estético. Os quadros mais tardios de Bonnard são fragmentos de mundo passados pelo crivo da inteligência artística e pela experiência de uma vida demasiado longa para resistir à melancolia. O resultado é belo, solar, suscita um alvoroço interior, desconcerta, cativa. O resultado também é lúgubre. Uma consciência aguda da finitude de tudo faz-se também sentir. É como se ele ao mesmo tempo pintasse as coisas e os fantasmas que se irão substituir às coisas.» (5)

E o mesmo se poderia dizer deste livro.




(1) Citação do Otelo de Shakespeare em "Razões para salvar Desdémona", p. 53.

(2) "Razões para salvar Desdémona", p. 45.

(3) "O azul omisso", p. 195.

(4) "Todos nós temos medo do vermelho, amarelo e azul", p. 265.

(5) "MAD-SVO", p. 101.