Porquê? Pergunto ao coração gelado.

 


IX

Porquê? Pergunto ao coração gelado.
Porque ardes sempre tu tão raramente,
demasiado sério e pungente,
coração, e sempre por rumo errado?

Querias até fingir ser outra coisa,
coração. Poeira, nuvem ou pluma.
Querias ser leve ou coisa nenhuma.
Paisagem vã em que nada se ousa.

De que serve, porém, querer que se esfume
tua essência, natureza candente,
absurda, veloz, brilhante e incólume?

O amor desvalido e sempre errante
num só e velho verso se resume.
Erros meus, má fortuna, amor ardente.





Há um fulgor que quero neste ir

 


VIII


Menos. Menos que breve grão de pó
girando em tão estranho infinito.
Estrelas, destino, universo, grito -
coroa de luz que me fazes tão só.

Num dia, temos tudo; noutro, tudo
nos é tirado. Apenas andamos
por aí e coroados andando
de dor mas de espanto sobretudo

perguntamos - e agora, que fazer?
Que fazer com a glória de existir
e a fronte coroada, que fazer?

Indiferença, maldição e porvir,
graça, desejo ardente de viver. 
Há um fulgor que quero neste ir.






Alma incógnita. Em zona interdita




 VII


Alma incógnita. Em zona interdita
nasce o amor que podia ter sido
outra coisa. Deserto, paraíso,
figura atónita - de outra vida.

Zona muda e queda, até chegares.
Que governa sem ser compreendida.
Exige e prega, sem ser atendida.
E escapa. Como ideia de não estares.

Desejo ou simplesmente dor que mói
do tanto que ficou por conhecer.
A alma é cega perante o que dói.

Nem vê, nem sente, nem sabe entender.
Espera sempre mais do que não foi.
Só sonhado - o que não chega a ser.







Soneto #6


Ideia repentina de ser nada.
Como fuzil, tão súbita e estranha,
queda por dentro, vertigem em chama -
pedais e volante, curva de estrada.

Noite diáfana em luz que desliza.
Pontos que dançam. Suaves traçados.
Fundo que assomas por todos os lados.
Chuva brilhante, na estrada que gira.

Estrada, estrada veloz, espécie de espuma.
Morrer é fácil - e então a dor?
Velocidade. Desejo de ser pluma -

o corpo ardente será o que for.
A carne e a consciência... entre uma
e outra - tanto dança, como dor.

Antecâmara

Sonho CCXCIX 


Naqueles dias que então corriam, tudo parecia estar mal e tomar a figura de uma tragédia, mas a partir do momento em que lhe apontaram a ponta do fuzil à testa, bem no meio dos olhos, tudo isso adquiriu de repente um aspecto de paz e felicidade excelsas. Foi forçada a recuar, diante da arma, divisão a divisão, andando de costas, até que se encontrou numa daquelas salas imaculadamente brancas e com um vidro de observação, como se vêem nos filmes americanos, no interior de certos asilos que são também estabelecimentos prisionais. Sabia que estava condenada à morte, mas tudo o que não queria era morrer. Ficou ali, semi-despida, e pôde verificar que atrás do vidro estava um dos três amores da sua vida. Seria possível que ele a tivesse condenado a estar ali, que fosse responsável pelo exército e pelos homens de baioneta? Parecia que não, afinal. Observando melhor, podia verificar que estava inconsciente, semi-despido e como se estivesse entalado entre paredes. Seria R., D. ou F.? Não conseguia distinguir as feições do seu rosto, que eram quase desconhecidas, mas, ainda assim, infinitamente familiares. Como era possível, se o rosto era tão nítido, tão belo, tão jovem e tão definido? Em que tempo estariam agora? Teriam já morrido? Seria a vida depois da morte? Não. Não podia dizer quem fosse. Uma angústia difusa e imensa invadiu-lhe o coração, uma dor que parecia espraiar-se para além das galáxias. Como suportá-la? Com que grito? Afinal ele era louco, tinham-lhe vestido um colete de forças. Estava ali, como um bebé no ventre da mãe, todo encolhido, e parecia prestes a nascer. Deus queira que nascesse, pensava ela, que nascesse rapidamente. Não suportava vê-lo ali. E também não queria morrer. Toda a angústia lhe parecia agora suave e mesmo alegre, comparada com a antecâmara da morte.



 


Expliquem-me só