As cores do mundo sob o efeito do amor

Sonho CCLXXIII
 
 
Dera por mim a fazer uma coisa totalmente inesperada, que jamais me passaria pela cabeça.
 
Sentada no banco de trás de um volkswagen descapotável, descalçara o sapato do pé direito e, como aqueles russos que atiram o copo para trás depois de beber um shot de vodka, lançara o sapato para trás das costas. Porém, não contente com isso, dera ainda um salto mortal, e, com uma cambalhota para trás, voara do banco do automóvel para ir ao encontro de um antigo amor.
 
Alegremente nos abraçámos e fomos dar um passeio na praia, e eu olhava em redor maravilhada com as cores que agora matizavam as paisagens. Parecia que tudo ardia com um fogo interior que transfigurava as superfícies e que as fazia vibrar, como se agora todas as pequenas coisas dançassem com fagulhas de luz e cores luxuriosas, traçando piruetas que eram como explosões de pirilampos, rodopiando no ar. Eram as folhas das palmeiras que agora tinham todas as cores do arco-íris, amarelo, azul, verde, rosa e vermelho, e as montanhas que se incendiavam nos cumes dourados, como se ardessem em brilhantes labaredas de ouro. Por detrás das árvores, cintilavam faíscas lilases e por todo o lado parecia que as coisas tinham sido coloridas pela alegria selvagem de uma criança.
 
- Ah!... - Dizia eu. - Vês aquele lilás?
 
- Aquelas cores do arco-íris nas palmeiras? Aquelas montanhas douradas?

Ao mesmo tempo franzia os olhos para tentar ver o mundo sem aquelas cores fulgurantes, porventura o mundo como fosse ele mesmo, o que nunca se saberia de facto.

Mesmo que aquela fosse a visão absolutamente privada do mundo incendiado pelo meu desejo, queria ter aquelas montanhas douradas e o fulgor das faíscas lilases na sombra das árvores gravados nos meus olhos para todo sempre, por séculos e séculos e por todas as aventuras e vidas e futuras da minha alma, se um dia lhe fosse possível renascer!... 

The hell

Sonho CCLXXII


A Françoise abriu a porta de casa e encontrou dentro da banheira dois ladrões. Ficou tão surpreendida que os deixou fugir. Nada tinha sido roubado lá em casa, apenas havia coisas a mais. «Agora os ladrões, em vez de roubarem coisas, trazem coisas?» Havia dois limões e uma caixa de fósforos em cima da bancada. Para além disso, a Françoise descobriu uma bomba instalada no fundo de um dos armários da cozinha. Tinha escrito, em letras vermelhas contra um fundo amarelo:
 
 
THE HELL
 
E fazia tic-tac.

«Ah!...» - exclamou a Françoise - «Talvez a bomba sirva para rebentar com o quarteirão inteiro, ou, quem sabe, com a cidade inteira!...» A Françoise ainda pensou em correr o mais que pudesse sem avisar ninguém, mas não conseguiu abandonar o resto das pessoas à sua sorte. Foi chamado um especialista em desactivar bombas e ali ficou a trabalhar, de joelhos, com instrumentos minuciosos. A Françoise por sua vez ficou a observá-lo, contagiada pelo seu auto-domínio e bravura. Se a bomba explodisse, voariam os dois pelos ares em mil pedaços.

- Como consegue ter tanta coragem e sangue-frio, e continuar a trabalhar sob tanta pressão? - perguntou a Françoise.

- Qualquer altura é boa para morrer. - respondeu o especialista.
 

Dupla pele

Sonho CCLXXI


Apercebi-me de repente que a superfície do meu corpo era um relvado. Comecei a arrancar aquela relva, que era como um pêlo, que saía facilmente e sem dor. Que estranho!... Não havia sangue, apenas estranheza. Por baixo desse relvado havia uma superfície que era exactamente igual aos fundos dos retábulos da pintura ortodoxa, um plano sensível ao toque, dourado e abstracto (pois não havia ideia nem juízo que lhe servisse de paralelo) e por onde circulava uma espécie de vertigem.
 

O salto

Sonho CCLXX


Tinham sido um casal feliz até à data em que ela decidiu dar o salto. Podia ver-se nas fotografias. Tinham um belo entendimento e apreciavam-se mutuamente. Um dia, porém, a rapariga decidiu lançar-se da escarpa de um abismo com centenas de metros de altura em direcção ao mar. Ele aplaudiu a ideia, que lhe pareceu destemida e grandiosa, e ela lançou-se, com um brilhante fato-de-banho que faiscava ao sol. Aquele segundo em que se arrependeram foi em vão. Foram precisos meios aéreos e náuticos para resgatar a rapariga que foi procurada durante horas no mar e que sobreviveu, contra todas as expectativas, mas sem nunca mais poder voltar a ser o que era. 

Os sonhos em que perdemos a roupa

Sonho CCLXIX


Já não sei porque carga de água teria perdido a minha roupa.
 
No espelho das aulas de dança é que tinha captado de um modo involuntário e pela primeira vez certos vislumbres de um corpo desconhecido - o meu. Porque todos os corpos têm um tema que não corresponde à figura, e esse tema tem um aspecto musical, como se fosse um contraponto. Trata-se de uma composição abstracta de linhas e planos que tecem uma harmonia única e peculiar e de que temos a visão clara no caso dos outros e sempre a visão opaca no nosso. Porque existe um contraponto entre linhas de movimento e extensões planas, nos corpos de toda a gente, e desse contraponto nasce uma postura que aparece toda enfeitada de afectos, como um pássaro enfeitado de penas. É uma composição viva e móvel de linhas e movimentos abstractos (porque não são figuras nem contornos objectivos), que nos faz dizer de alguém, por exemplo, que é uma pantera. E é também uma espécie de graça, muito evidente nas crianças e nos animais, mas por vezes mais apagada nos adultos. Certo nariz, certos olhos proeminentes, certos caracóis na nuca que de repente se tornam tão expressivos. No meu caso surpreendera inesperadamente umas linhas planas que nunca imaginaria ter e uma espécie de peculiar alegria e delicada altivez, que seriam insuspeitáveis. E agora que por um milagre da percepção pudera de certo modo vislumbrar um tema no meu próprio corpo, agora que conseguira uma tal proeza é que dava por mim nesta situação confrangedora.
 
Não fazia a mínima ideia de como sair condignamente do banho turco.
 

Flor

 
 
 
 
de Artur Borboleta
 aqui
 
 
 

O príncipe e o limoeiro

Sonho CCLXVIII


Chegava-se àquele cais arruinado por um caminho estreito e escuro, que nunca imaginaríamos que pudesse desembocar no mar.
 
Esse caminho tinha uma qualidade soturna e opressiva, como se em tempos tivesse morrido ali gente e as almas ainda nos assombrassem os passos, de um modo subliminar.
 
O meu coração doía difusa e indefinidamente.
 
Porém, quando se abriu a portinhola que me deixou no cais, suspirei de alívio com a visão do mar.
 
Quem guardava aquele cais era um príncipe louro que vivia ali como um eremita, completamente só.
 
O seu palácio era pobre, mas belíssimo.
 
Tinha apenas duas salas.
 
A primeira sala dava directamente para o cais como se fosse o balcão de bilhetes de uma estação de comboios.
 
Dispunha-se em socalcos, separados por pequenas escadinhas de pedra muito gasta. Tinha uma lareira central no segundo socalco, muito bonita, e, a todo o comprido, pequenas janelinhas medievais com arcos sustentados por colunatas.
 
Dali se via o mar a perder de vista e os barcos que chegavam e partiam.
 
Uma vez por ano, chegava um grupo de santos que partia rumo ao desconhecido, em silêncio.
 
Olhei para o príncipe que fitava o mar, sentado numa cadeira, enquanto os santos passavam por nós.
 
O espaço era pequeno e, sem querer, um dos santos deu-me um encontrão.
 
Pensei que podia ir com eles, mas não gostava de andar em grupos.
 
Também não queira ir de catamaran.
 
Chegou então uma mulher, que ficou a olhar para o príncipe.
 
O príncipe tinha uns belos cabelos e a mulher, com aqueles cabelos, fez uma trança.
 
No dia seguinte a mulher voltou e os dois fizeram amor.
 
Foi assim durante sete dias, e depois disso começaram a conversar.
 
Ficaram juntos muito tempo, mas um dia a mulher disse: «Ai!... Não tenho filhos!...»
 
E foi-se embora.
 
Passado algum tempo chegou um pardal, com uma folha de limoeiro no bico.
 
Deixou ali a folha do limoeiro, aos pés do príncipe.
 
No outro dia o pardal voltou e deixou cair uma semente no canteiro da janela.
 
O pardal não regressou, mas da semente nasceu um limoeiro que deu fruto à razão de mil.
 
Via-se o limoeiro contra o mar - e o amarelo contra o azul.
 
Com o tempo, os cabelos do príncipe ficaram brancos. A sua trança ficou completamente branca.
 
Um dia encontraram o príncipe morto, na cadeira em frente à janela.
 
Não se percebia se estaria a olhar para o mar ou para o limoeiro.
 
Veio outro substituí-lo nas suas funções.
 
Eu não queria ir de catamaran.