Todos nós temos medo do vermelho, amarelo e azul - de Alexandre Andrade






Mais uma vez, somos brindados com a surpreendente leitura de um livro de contos do Alexandre Andrade, desta feita um conjunto de histórias quotidianas e peculiares sobre o que podemos chamar o poder das cores. A força e o caos com que podemos ser afectados pelas cores, não só através de uma arte a que nos habituámos chamar pintura, mas também pelas cores em si mesmas, como acontecimentos da nossa vida íntima e plural, organizam de um modo singular o elenco deste conjunto de onze pequenas histórias em cujo domínio Alexandre Andrade se revela mestre.

Saindo de uma inauguração de uma exposição de pintura no Bairro Alto, André, submerso ainda no abalo que lhe causou a visão dos quadros e depois de uma conversa inusitada e cordial com aquela que nem sonha ser a autora em carne e osso das obras em causa, toma a decisão, que não tem forças para realizar, de mudar radicalmente de vida, terminando imediatamente a relação em que está. Impedem-no os amigos comuns e as amigas, mas fica desta descrição o equivalente a uma travessia do deserto, uma entrada no caos, uma desagregação que atravessará o livro de uma ponta à outra, como essa imperceptível mas constante vacilação de nós todos, personagens, artistas, leitores e gente fora do livro, entre uma decisão e outra, entre uma vida e outra, entre a vida e a morte. 

Como noutros livros de Alexandre Andrade, os personagens estão sempre à beira de qualquer coisa que por vezes acontece, mas que dificilmente acontece. Uma decisão, uma ruptura, um encontro, uma mudança, um ajuste de palavras, uma declaração de amor, a morte. Toda uma agitação e tormenta interiores que no quotidiano se vertem essencialmente em gestos inócuos, mudos, inexpressivos e surdos, para, de um modo raro e extraordinário, poderem por vezes assumir o aspecto de um acontecimento. Como a rapariga que extrai do corpo, num esforço invisível de liberdade e revolta, numa rua de Lisboa, uma cópia de si mesma: esse "fardo precioso".

«Naquela rua de Lisboa, comigo parada no meio do passeio, sucedeu então mais uma coisa estranha a somar às demais daquele dia quase prodigioso. Mentalmente, fiz um gesto que consistiu em estender um braço fabulosamente longo e flexível, dobrá-lo de volta na direcção do meu corpo, e extrair, não sem violência e efusão de sucos vitais, uma cópia de mim mesma, admiravelmente maleável e capaz de se conformar, a pedido, a qualquer expectativa que alguém pudesse alimentar a meu respeito. Tudo isto foi, bem entendido, invisível. Para os cidadãos que passavam por mim, eu era uma rapariga especada, com tempo para cismar. Com o meu fardo precioso debaixo do braço, encetei o caminho de regresso ao meu quarto arrendado. It is the cause, it is the cause, my soul.» (1)

Qual a fronteira entre a arte e a vida? Como as separamos uma da outra? «O labrego que salta para o palco e arremete contra Otelo no preciso momento em que este se lança sobre Desdémona para a assassinar tem todas as razões do mundo para agir desta maneira. Quem ousaria censurá-lo?» (2)

Neste sentido, há um forte fio condutor, ainda que subliminar, entre os diferentes contos. É a aventura do quadro de Barnett Newman, Who´s Afraid of Red, Yellow and Blue III, que, no dia 21 de Março de 1986, foi vandalizado com um x-acto por um pintor abstracto desconhecido, Gerard van Bladeren, no Museu Stedelijk, em Amesterdão. 

Que nos diz, logo nas primeiras páginas, a convocação deste crime passional?

O pintor B, em coma induzido no hospital de São José, depois de cair do alto do enorme escadote em que pintava, ouve tecerem-se em torno de si e das suas obras as conversas de filhos, ex-mulheres, amigos, familiares e actual mulher. Arriscou-se demais no esforço de pintar aquela oval, aquela cor, e a consequência, neste caso, oscila entre o maior prosaísmo e a maior grandiosidade de toda a vida humana, o amor de todos os que amamos ou em tempos amámos, e a morte.

Duas mulheres, viajando a bordo de um avião a novecentos quilómetros por hora, descobrem que um quadro de Pierre Bonnard presidiu a uma das viagens e encontros mais incompreensíveis das suas vidas, numa coincidência inimaginável e impossível de explicar. Só por esse quadro se descobrem unidas, do mesmo modo que se descobrem, como nesses momentos de rara e dolorosa lucidez que todos já experimentámos, suspensas sobre o abismo de nada saber sobre o sentido da vida, paralisadas nessa encruzilhada das mil incertezas e de todas as perguntas que nunca hão-de ter resposta.

Bianca, que tenta um auto-exame sistemático nas viagens de metro para o seu trabalho de optometrista, apesar de saber que não há maior felicidade do que ler poesia enquanto caminha ao ar livre, e apesar de hesitar em perseguir qualquer felicidade, na rotina um pouco inerte dos seus dias, questiona-se se as cores realmente nada significam, quando parecem trazer uma mensagem de vida ou de morte.

Tom sofre de cromofobia, o que lhe pode causar tonturas, ansiedade, náusea, taquicardia... e um incrível (e incompreensível para todos) rol de desculpas para não trabalhar naquela edição de imagens a cores.

A menina América morre num acidente de metro, nessa paleta de sangue, «com as suas tonalidades impossíveis de serem confundidas com outras», depois de arrematar em leilão Dans le Bordonnement I, de Tal-Coat?...

De onde caíram os confetti coloridos do azul omisso no famoso quadro de Vlaminck, A Paisagem de Outono, e que agora estão sobre os ombros radiantes de Z e Hugo, o casal reconciliado e aureolado pela mesma cor do quadro que originara a disputa e as agressões quase fatais entre um e outro? O miserável narrador do conto volta mais a este episódio do que a todos os do resto da sua vida, aos quais o distanciamento não traz como bónus a capacidade de hierarquizar, nem a importância, nem o alcance. (3)

No final, um homem que entrega a gestão de uma empresa em queda irreversível a uma criança rasga com uma faca a reprodução do quadro de Barnett Newman, Who´s Afraid of Red, Yellow and Blue III.(4)

Afinal, que nos diz a convocação deste crime passional?

Muito se poderá pensar por aqui neste livro sobre a força e o caos com que as cores nos atingem.

«Pierre Bonnard é daqueles pintores que, na fase final de uma vida e carreira que foram longas e prolíficas, retratava os objectos, pessoas e paisagens do seu quotidiano com uma simplicidade aparente que parecia por vezes confinar com o desleixo, ou até sugerir alguma regressão no talento. Nada mais longe da verdade. A aparência quase tosca de todos (e foram muitos) aqueles interiores domésticos, auto-retratos, nus, naturezas-mortas, paisagens, a impressão de incompletude, a ambiguidade na articulação dos planos, as intrigantes escolhas cromáticas, eram o estádio derradeiro e esplendoroso de um percurso estético. Os quadros mais tardios de Bonnard são fragmentos de mundo passados pelo crivo da inteligência artística e pela experiência de uma vida demasiado longa para resistir à melancolia. O resultado é belo, solar, suscita um alvoroço interior, desconcerta, cativa. O resultado também é lúgubre. Uma consciência aguda da finitude de tudo faz-se também sentir. É como se ele ao mesmo tempo pintasse as coisas e os fantasmas que se irão substituir às coisas.» (5)

E o mesmo se poderia dizer deste livro.




(1) Citação do Otelo de Shakespeare em "Razões para salvar Desdémona", p. 53.

(2) "Razões para salvar Desdémona", p. 45.

(3) "O azul omisso", p. 195.

(4) "Todos nós temos medo do vermelho, amarelo e azul", p. 265.

(5) "MAD-SVO", p. 101.