Presque rien #8

 

Um barco amarelo, um navio vermelho e algumas bóias amarelas sobre o mar.


Breve


Nesta capelinha no Bom Sucesso foi onde fiz a minha primeira comunhão, com rosas brancas nos totós (e no raminho) e umas sandálias de verniz muito apertadas. As rosas eram do jardim da minha avó, as suas flores preferidas. As sandálias eram da minha prima Joana. O vestido era especialmente bonito. Mandaram-no fazer em piquê e bordado inglês, com pequeninas mangas de balão e um laço atrás, lembro-me bem. O meu pai disse-me que eu tinha deitado a língua de fora ao padre. Era bondoso e delicado, aquele padre, o que se vê bem nesta fotografia. Só tenho boas recordações dessa experiência infantil. Ao meu lado está a Sofia, que veio a ser campeã nacional de ténis, a olhar com muita atenção para tudo aquilo. Eu e o meu irmão, felizes, sempre a pensar nas próximas brincadeiras e disparates que éramos pródigos em inventar e que punham à prova a paciência de alguns. Mas foi a minha mãe quem me ensinou a rezar. Todas as noites, em pequena, enfaixava-me numa manta à maneira russa e rezava comigo. Que bom que era e que grande força me deu, na verdade. Sou daquela espécie de pessoas que não podem viver sem Deus. Ou se consomem e dissipam, ou definham... ou se suicidam, os desta espécie. Talvez por isto ame tanto Dostoievski. Não faço parte de nenhuma religião. Deve ser reconfortante ter uma fé comunitária e partilhada, mas nunca me foi possível aceitar nenhuma espécie de dogma, nenhuma narrativa, nenhum movimento geral. Quando tinha nove anos e vi as crianças durante a fome da Etiópia com os olhos cobertos de moscas, na televisão, decidi que não havia Deus. Tive e tenho muitas questões, muitas angústias, conflitos e aporias, muitos becos sem saída, muitos desastres, por assim dizer. O meu caminho não foi e não é a direito. E tenho um horror visceral a clichés, ideias e crenças que parecem ser aceites sem sentido crítico e que avançam nas massas com uma força cega, mecânica, porque observo que este tipo de pensamento pode produzir sofrimento, miséria e, em último grau, loucura. Quanto a isto, acho que a coisa que mais falta é indignação. Poderia escrever longamente a este propósito, mas quero só falar de uma coisa que são as sensações. Certas sensações extraordinárias e maravilhosas, inexplicáveis e magníficas. No esplendor, na natureza toda e nos rostos, tantas vezes sinto simplesmente uma coisa: Deus. Estou bem numa igreja, como à sombra de uma árvore ou no topo de uma montanha, olhando em volta.

Orações a um deus desconhecido


Deus, dá-me força na adversidade. Traz-me paz. Ajuda-me a aceitar a dor e a alegria com a mesma humildade. Ajuda-me a aceitar os desígnios do universo, que não conheço, mas que talvez venha um dia a conhecer. Qualquer que seja o meu destino, dá-me força e dignidade. E que eu possa dar hoje ao mundo qualquer coisa de bom.


Sobre o suicídio


Marx escreve um pequeno opúsculo sobre o suicídio, a partir das notas de Peuchet (1758-1830), um ex-arquivista policial com uma trajectória de vida particular. Este texto em português peca por não separar os comentários de Marx das citações de Peuchet. Mas é possível fazê-lo, por exemplo, nos arquivos online dos trabalhos de Marx em inglês. O que me fascina, na análise de Marx, que considero, como em tantos outros aspectos, visionária, é que ele não aborda o suicídio do ponto de vista de um sintoma da saúde mental, como hoje em dia é um chavão acontecer, mas como produto de um conflito insanável de forças que se estabelecem entre a sociedade, a família e uma pessoa, ou um conjunto de pessoas. Gostaria de conseguir pensar sobre o suicídio, antes de Setembro, escrevendo um "pequeno ensaio sobre a estranheza," a partir da terceira parte de uma frase que ali aparece: «A opinião é muito segmentada por via do isolamento dos homens; é ignorante demais, corrompida demais, porque cada um é estranho de si mesmo e todos são estranhos entre si.»