Suportar os privilégios


Estava de férias numa casa agradável, na Riviera, que tinha um belo piano de cauda onde se podia tocar. Tocava ali muitas horas e como gostava tanto de lá estar, decidia passar lá mais uns dias. Saía e, quando regressava, podia ver que fora tudo impecavelmente limpo. A casa na verdade tinha muitos mais quartos do que aqueles que precisava. As camas impecavelmente feitas estavam abertas com um uma pequena dobra, familiar, acolhedora e convidativa. Cheirava tudo a lavado e havia nos pormenores sobriedade, requinte, delicadeza e um bom-gosto invulgar e agradável. Porém, o velho piano de cauda tinha desaparecido e, no seu lugar, estava um outro instrumento musical. Se fosse um clavicórdio, como parecia, valeria a pena passar ali mais uns dias. Mas era um daqueles pianos para crianças, muito maus, que dizia Kinder Piano e cujas teclas produziam um som horrível - tléc, tléc, tléc. Com grande desapontamento, comecei a explorar melhor a casa, coisa que ainda não fizera, apesar dos dias agradáveis que lá passara. Não precisava daquele espaço todo, nem de tantas salas e camas, nada. No fim da casa que descia em patamares brancos e arejados por uma espécie de encosta  solarenga, estava um buraco, um exíguo buraco encarvoado onde vivia uma família com quatro crianças, seminuas, esfomeadas, sujas e descalças. Fiquei a olhar para aquilo em estado de choque. Parecia um quadro da revolução industrial. A senhora era quem limpava a casa, e eu dizia-lhe: "Não preciso daqueles quartos." "Ai." - suspirava ela. "A nós bem que nos davam jeito!..." Nada daquilo era meu, para que o pudesse oferecer, mas de repente senti uma vergonha horrível por dormir naquelas camas de suaves colchões de penas e macios lençóis de linho bordados, com aquelas pessoas, ali, a sobreviver em buracos fuliginosos. Não ia conseguir gozar nem mais um dia de férias, todo o meu prazer se fora. Alastrava em mim um nojo de todas essas coisas confortáveis e finas, paredes meias com tanta penúria. Como se vive do lado da abundância, com a miséria dos outros marcada a ferro na alma?