Do alto de outra esfera nos lançamos

Fragmento 63
 

Há quem pense: do alto de outra esfera
nos lançamos, breves corpos humanos,
do turbilhão veloz, para esta terra,
e num lance de sorte, aqui singramos.

Estranho tabuleiro de espaço-tempo
aqui onde se joga a chance única
da vida que se arranca ao infinito.
Estranho amor sem nome que nos cruzou
e que me fez nascer em ti, no tempo.

É lá nesse plano do infinito
que estamos abraçados para sempre -
os que só podem nascer uns dos outros.

Pois aí já não há violência ou dor,
nem palavras erradas, nem o caos
com que aqui se vê calar o amor.


A cauda da minha gata

Fragmento 67


A cauda da minha gata parece comentar os movimentos do seu corpo.

Ela dá um salto e a cauda: «Zác!... Zác!....» Para um lado e para o outro, ritmadamente.

Arqueia as costas e a cauda... desenha um gancho no ar, como um ponto de interrogação.

Faz «Minháu!...», esticando o pescoço, e a cauda, logo a seguir, como um ricochete, assume um desenho diferente, espetada no ar.

É tão engraçado!...

Isto de ter um rabo comentador, ou melhor, uma cauda perfeitamente expressiva, deve ser uma coisa... - não posso dizer do outro mundo, porque não é – ... mas deve ser uma sensação espectacular.

Turner

Fragmento 90

 
Do alto da rua que desce, sobre os telhados e as copas das árvores, vê-se ainda o mar, o imenso mar tranquilo em que planam quase imóveis os grandes navios mercantes, e, por cima deles, as nuvens, as inesperadas e enormes nuvens em múltiplos e suaves graus de cinza que se erguem em castelos do outro mundo e que falam de Turner.
 
Parece que as lágrimas me saem pelos poros da pele, não pelos olhos, mas sim pela pele, com um arrepio de acidez, dolorosamente amargo. O peito oprime-se com uma intensidade insuportável e, de repente, parece que sou aquele degradê entre as cinzas, que é por ali que passo, que é por ali que voo, com esse rápido arrepio que arde pela espinha acima e uma inesperada libertação.
 
Ah!... Vida!...
 
Bem diz Deleuze que Londres é a nossa Pítia, porque Turner está lá.
 
Eu tenho o meu Turner à porta de casa, nas minhas visões de nuvens e de mar.
 
Não há dúvida. São visões em que se abre a passagem, não a derrocada.
 
A pele sabe o que é «atravessar o muro». O corpo sabe milímetro a milímetro essa coisa incomparável que não é de época nenhuma, isso que vem de um eterno futuro ou que foge para lá.
 
Qualquer coisa que corre, ondeia, rebenta... o desejo?...
 
Nessa passagem que me desfaz, as cores cantam e o corpo dança, imóvel no seu lugar, na sua insuportável intensidade.
 
Que me importa se morrer? Nada me importa.
 
Tenho vontade de morrer exactamente como quando vejo esta paisagem.
 
Diluir-me nesta visão de cinza, absolutamente indiscernível.
 
Eu...
 
Afinal isso é só o motivo para um vago sorriso, vagamente apaziguado.
 
Pois não há qualquer dúvida que sou só de passagem, como que por um estranho acaso que não deixa, ainda assim, de ser uma fulguração.

Fragmento 28


Feliz com um livro no colo, na expectativa de ter fome e comer o almoço.

Sobre as miúdas que dão choque


Sonho XCIII


Heinrich Hart tocava ao de leve com as costas da mão numa das faces de Françoise M. e retirava-a muito depressa, como se se tivesse queimado.

«Esta miúda dá choque!...»

E aparecia-lhe então aquela encantadora expressão de surpresa divertida que às vezes se estampava no seu rosto.

«Pudera.» Pensava ela, para os seus botões.

«Se este homem me deixa completamente electrificada, é natural que eu dê choque!...»

O Tempo

Fragmento 129
 
 
Na auto-estrada Lisboa-Cascais, a visão das colinas.
 
Uma linha de verde, dobrada por outra que é um renque de choupos e de eucaliptos...  e, nessa linha delicada que divide a curva suave da colina contra o céu, uns tufos... uns fofos tufos de arbustos quase imperceptíveis que ali emergem, contrastando no cinza-azulado do céu imenso com a sua lógica de poeira dispersa e essa ironia pontual e quase infantil que tem o pequeno quando aparece no meio do grande.
 
O carro avança como uma nave entre o ritmo dançado das colinas, entre a conversa e a ilógica contrapontística das suas linhas cantantes, e o meu peito aperta-se com uma estranha ansiedade, essa emoção dolorosa dos encontros, que nunca se sabe quando irão terminar, ainda que o fim seja certo.
 
«É só isto.» Penso eu. «Eis tudo.»
 
Mas o coração enche-se então de um infinito, uma espécie de «ar».
 
Depois da ansiedade amorosa o coração expande-se e respira e eu vou nas linhas das colinas tanto como vou na linha suave que é a do movimento da minha nave, vou por ali naqueles tufos e na mistura suave dos múltiplos verdes, dançando em cada linha como se escorregasse por ela, como se acelerasse nela, como se com ela fendesse e abrisse um espaço, e em cada volta vou na velocidade infinita que é realmente mais pequena «que a do mais pequeno intervalo imaginado», tal é a rapidez com que o olhar me leva e trás, nas incontáveis direcções que compõem toda a paisagem em movimento que atravesso.
 
A ida é já uma volta, não há dúvida, e quando fui já voltei, sempre que fluí por cada linha.

De repente, foi abolido o tempo.
 
Onde estou, que já não tenho tempo?
 
O tempo fez-se paisagem, a vida agora é um panorama.
 
Parece que posso visitar a minha morte com o meu velho corpo de criança que me diz sempre que a morte é impossível, que a morte é uma ilusão de óptica.
 
Mas porque é que o tempo é tão diferente do espaço? Porque é que Espinosa os aglomerou no mesmo conceito de «extensão»? No espaço «anda-se» para trás e para a frente, mas não no tempo.
 
O tempo é como uma muralha de pó que vai voando à medida que a percorremos. Parece uma franja, um vento ou um feitiço. Não andamos de um lado para o outro, a encontrar os mesmos lugares no tempo. As histórias, os mitos, as narrações e as memórias não nos convencem. Tudo isso são andaimes nas ruínas do tempo, apenas um pouco mais lentos que a sua curiosa pulverização. Nunca sabemos muito bem «por onde fomos», no tempo. Ele é ainda mais inapreensível do que uma paisagem sob a bruma, composta de bruxedos que a desfazem, mal se tira o pé.
 
Mas então como é que agora sou mais rápida que o tempo, nas linhas das colinas que dançam?
 
Dobrei o tempo ao contrário – oh! alegria! – mas terá sido na velocidade do esplendor das cores que de repente o tempo se aboliu?
 
Talvez por isso me aconteça aquela opressão apaixonada no peito e o ar que me entra súbito no coração, talvez por isso apareça assim na mente esta intuição ainda por explorar e que simplesmente afirma:
 
«É só isto. Eis tudo.»