contraponto e confissão (15) - interlocutores de Sócrates


É possível que estas personagens tenham mais escolha sobre o que pensar, talvez mais escolha que eu que sou abalada por pensamentos como por placas tectónicas em movimento. Principalmente quando esta espécie de abalo diz respeito aos movimentos subtis, indetectáveis, e aos grandes movimentos que lançam grandes destruições. Cada personagem pode escolher a sua via, uma via a explorar intensa e radicalmente e até às últimas consequências, até à morte, se for necessário. Será isto uma espécie de hedonismo? É possível. Apesar de toda esta invenção, também não deixo de ser uma personagem. Preciso, de algum modo, de elaborar, sobre a vida, uma narrativa permanente, ainda que instável. Decidi chamar-me A. Por vezes escrevo no feminino, outras no masculino. Queria um neutro, mas em português essa proeza gramatical nem sempre é fácil. Optei então por seguir a tonalidade em que estou no momento. Ora feminina, ora masculina, ora neutra. Em geral identifico o masculino com o universal, por causa do tanto que li em masculino. O feminino tem qualquer coisa de mais íntimo e privado, mais musical, enquanto que o neutro me é sumamente agradável, em diversas circunstâncias. Também A. me agrada sumamente, não sei exactamente porquê. Sempre gostei da aliteração do "A" no meu próprio nome, desde o momento em que compreendi o que era um "A". Também gostei que o "A" estivesse, nesse nome, no princípio, no meio e no fim. Adriana. É uma espécie de círculo sonoro, uma pequena imagem do infinito. Mas também é possível que toda a existência seja uma espécie de hedonismo. Esse estar aí. Porque também existe o sol, a paixão e os banhos de mar. Essa suave penugem quase invisível no rosto e o sabor dos lábios, dos meus e dos teus, misturados. Existe o existir simplesmente, sem mais nada, como um milagre e uma coisa sumamente aprazível. Paraíso de mundo, esplendor de árvores que dão frutos que trincamos e se desfazem na boca. Pura volúpia. Personagens que são totens, amores, vias a explorar e interlocutores de Sócrates. Diques como os da Holanda e dos castores. Pois é preciso que a terra não seja tomada pelo mar, nem a alma pelo caos. Então vamos segurar um pouco o caos com estas divisórias que são as personagens. Françoise M., de olhos verdes e longínquos. Maria do Mar dançando. F. de Riverday - morta. Artur Borboleta, tão fino, Orlando I e António Pizarro, quase antagónicos, um, na sua sensualidade sofisticada e outro no seu peculiar ascetismo. Há-de chegar a seu tempo, o caos. Há-de chegar definitivamente e não sabemos em que forma. Será o desespero, o deserto, a ausência total de esperança, a degradação, a doença, a loucura ou a morte. Mas pelo menos por enquanto vamos ter o consolo dessa ilusão inocente, que certamente será um dique contra a loucura. E de facto estaremos menos sós, teremos com quem falar, mesmo que nenhum desses convivas se entenda. Não há dúvida. Quem escreveu assim em primeiro lugar foi Platão. Ele e os vários interlocutores de Sócrates, que falam de vinho, de amores, de estradas, de caminhadas e de galos. "Para onde vais, meu caro Fedro, e de onde vens?" "Venho de casa de Lísias, o filho de Céfalo, caro Sócrates, e vou dar um passeio até lá fora das muralhas. Estive muito tempo com Lísias, passei toda a manhã sentado!"

contraponto e confissão (14) - o rosto e a máscara

 

Mas eis que a expressão do rosto obedece a inúmeras regras não formuladas e não enunciadas. Algumas, como não deitar a língua de fora nem abrir desmesuradamente a boca, aprendem-se em criança. Outras, como não rir de boca aberta, só são explicitadas pelos mais velhos no florir da sexualidade, na puberdade. Não chorar. Não gritar. Não amuar. Não fazer "má-cara." Não torcer o rosto num esgar, mesmo quando se abomina a comida. O rosto está coberto de regras, de teias, de redes, de grades, de suposições, de ideias, de mentiras e depressa se enche de manchas, de feridas, de rugas, de borbulhas, de pequenas pastas que emergem, como suaves e torpes tumefacções. Há quem tenha vergonha de corar. Por fim, os vermes hão-de comer o rosto, assim como a carne. A energia libertada dessa bela decomposição talvez dê para criar um outro universo, paralelo a este. Bacon pintou com invulgar maestria a violência que subjaz e se impõe nos rostos. Dos rostos um outro olhar mais livre pode captar as equimoses, os derrames, as torções, os buracos e os abismos, como grandes pancadas e golpes infligidos na alma. Mas todos fingimos que não vemos. Ah!... Nada disso se vê, meus queridos amigos. Não se nota. Queremos acreditar que essas coisas não são visíveis, pois não? Um sorriso puro, sem mácula, exibindo uma fileira de dentes brilhantes. Um olhar confiante, mesmo quando a alma se arrasta como o mais miserável dos moribundos, tudo isso é tão necessário como não sair apenas de meias para a rua e andar de sapatos calçados. Sim, o rosto é uma regra social. Gente que traz nos olhos a vida, onde estais? Gente que olha para a câmara sem saber o que é uma câmara, sem trazer consigo a sua "pose," onde estais? Outra humanidade, onde estais? Seriedade selvagem, onde estais? Onde estais, revolta, desamparo, tristeza? Nascemos de rosto aberto e transparente, mas depressa ele aprende as suas mentiras. Não podemos chorar nem gritar a toda a hora, nem podemos torcer o rosto nessa careta que traduz a nossa náusea permanente, a náusea que o mundo nos inspira. Vivemos no tempo dos agradáveis sorrisos, do elogio da felicidade. Que linda, a felicidade.

contraponto e confissão (13) - médica sem fronteiras, escritora


Muito jovem, pensei que teria duas escolhas. Ou seria médica sem fronteiras ou seria escritora. A primeira tarefa parecia-me extremamente necessária, algo que tinha de ser feito. Uma forma pacífica de lutar, de transformar um mundo cuja visão me inspirava tanto sofrimento e revolta. Nessa altura, na minha primeira juventude, lembro-me bem de como tive de me obrigar a parar de pensar em muitas coisas, pois corria o risco de morrer a cada segundo. Como viviam as meninas na Nigéria. Como morriam os palestinianos. Como trabalhavam os pobres. Como se prostituia no Cais do Sodré uma menina de catorze anos que nascera na barraca em frente da minha casa. Como a lama cercava as barracas, no tempo da chuva, e tudo cheirava mal por ali. Como se tirava o leite das vacas e os ovos das galinhas. Como se cortava a carne nos talhos. Só na comida que chegava à minha mesa, a comida que comia com grande apetite, se pensasse muito, não conseguiria mais engolir, quanto mais comer. A vida dos animais. Um cão magro que passasse por mim, de olhos angustiados e famintos. Aquele casal de bêbados que vivia numa casa abandonada e arrastava nos braços os dois filhos escanzelados e minúsculos e onde se via sempre, nas carinhas sujas, os riscos marcados do choro. Em cada pensamento havia um risco de colapso absoluto, se me atrevesse a pensar e a sentir o que via. A minha alma era como uma esponja que podia absorver toda a dor e explodir. Mas senti cedo que poderia viver abdicando da primeira missão, interventiva, mas não da segunda, irrelevante em potência. Estranhas certezas. Esta foi uma forma de perplexidade que me acompanhou durante muito tempo. Porquê? Não havia nada de lógico nesta escolha, pelo contrário. Escrever poderia ser um acto simplesmente hedonista, delicadamente irrelevante, e o seu alcance real sempre impossível de prever ou medir. Então para quê? Durante muito tempo me consolei com o facto de que semelhante tarefa pelo menos teria a vantagem de produzir um lixo inócuo. Quer dizer: um dano irrelevante. Melhor do que andar de carro todos os dias. O António Pizarro dedicou-se a pensar nisso. Porém, fugir de casa é muito difícil, principalmente quando se é uma menina. Os perigos sopram por todo o lado. Não valemos muito. É impossível não reparar desde muito cedo nesse cinismo hipócrita da boa sociedade que defende grandes valores ao mesmo tempo que vai descartando vidas humanas, de forma mais ou menos encoberta e subtil. Uns ganham muito, outros quase nada. O tempo de uns vende-se caro, enquanto outros trabalham de graça. E nem sempre os primeiros são melhores ou mais inteligentes, está à vista de qualquer criança. Fugia de casa, sempre à frente de um pelotão de não-razões para sair. Como fazer mais? A partir desta estranha certeza comecei então a viver o meu tempo de ficção, mas não eram máscaras os meus falsos nomes, todos eles declarações de amor, pedaços de nomes de gente que amei. A minha única máscara era o meu próprio rosto, que disfarçava numa aparente uniformidade tanta gente por dentro, tantos amores.

Contraponto para Isabel Aguiar (12) - algumas palavras sobre o amor

 
Fugir de casa é muito difícil. Precisávamos de uma casa que não nos oprimisse e onde o espaço fosse em excesso. Foi a casa que inventei. Pensámos que nela poderíamos reinventar o amor. Todos os tipos de amor. O amor entre nós, os amigos, e a paixão, o amor sexual. O nosso fracasso foi absoluto. De um certo ponto de vista, sofremos todos de um excesso de sensualidade, a Maria do Mar, a F. de Riverday, a Françoise M., o Orlando I, o Artur B., o António e eu. Claro que esta expressão - excesso de sensualidade - pode gerar um infinito mal-entendido, simplesmente porque a visão da sensualidade nos tempos que correm se prende (como aliás acontece na maioria dos assuntos) com um rol de estereótipos e banalidades. O ar é irrespirável nos tempos que correm. As ideias e os comportamentos são de uma pobreza feroz, ofuscante. Os códigos chegaram ao estado de uma penúria confrangedora e perderam parte do significado, por exemplo, para nós, tornaram-se incompreensíveis. E as ideias gerais sobre o amor sofrem do mesmo mal, da mesma doença contemporânea da produção em série e dos conceitos massificados. Pode observar-se frequentemente uma rudeza, por vezes uma alarvidade, no tratamento entre os sexos, uma mudez doentia na abordagem do desejo. Os clichés repetem-se até à exaustão total, até que ninguém tenha mais nada para dizer. Talvez por isso o amor para nós tenha sido sempre um desastre. Éramos como bólides desgarrados, elementos sem par. Concordámos porém numa coisa. Pareceu-nos que Jesus e Espinosa foram quem mais avançou no campo amoroso, ainda que com revoluções mal compreendidas e por cumprir. É verdade que fomos forçados pelas circunstâncias desfavoráveis a viver mais o amor e o sexo na imaginação do que na prática. Talvez seja triste - ou talvez não. Talvez nesta ruína tenhamos preservado esse pequeno brilho de uma precária e breve inocência - e de uma certa falta de prática, irremediável. Mas não vamos dizer muito mais, porque o que há para dizer dá trabalho para muitos livros. Sabíamos que a situação se estava agudizando. O amor e a sua expressão e realização sexual, ou não, serão ainda os elementos pilares de um romance a vir. Há nisto, não há dúvida, uma urgência. A revolução urge. Estamos a dar pouco ao mundo, em relação ao que nos foi dado. É sempre pouco, pouco, pouco. E a angústia é tremenda.

Contraponto para Isabel Aguiar (11)

 

O rosto é que é a máscara. 
É preciso inventar qualquer coisa para poder tirar o rosto. 
É preciso fazê-lo depressa, antes que se acabe o tempo. 
Colocar chapeuzinhos de sol nos pulsos e nos tornozelos. 
Uma saia de palha, como nas tribos da Guiné. 
Máscaras rectangulares, como dançarinos do Mali. 
Que espanto, o rosto no espelho. 
Que estranheza. 
Teria três, quatro anos? 
Perguntava: é isto? 
Esperava talvez que fosse outra coisa. 
Koala, tigre, lagarto, borboleta, flor. 
Tudo num rosto parece tão desavindo. 
Os olhos, o nariz, os dentes, o cabelo, as pestanas, as sobrancelhas. 
A boca por dentro. As amígdalas. 
Será que conseguiremos um dia amar o nosso rosto? 
Em fotografias que já não são as do meu rosto actual,
então de súbito sinto que aquilo era eu.
O tempo voa. 
A consciência de ser alguma coisa é sempre desfasada. 
Talvez um dia depois de morta 
olhe para o meu último rosto muito enrugado e suspire por ele. 
Teremos certamente um ou mais rostos por ano. 
Talvez a maior estranheza talvez seja não ser outra coisa. 
Um pássaro. 
Uma chita veloz. Um  raio de luz. 
Uma pedra. Uma nuvem de pó. 
Será a memória filogenética 
ou antes a possibilidade de ser realmente qualquer coisa mais plástica? 
Uma expressão mais abstracta e acidental da vida? 
Talvez a simples sensação de ter sido um embrião no ventre materno 
que em tempos abandonou as guelras e em que as mãos, 
antes de se separarem os dedos, foram barbatanas. 



Contraponto para Isabel Aguiar (10)

 

Não é um comboio de corda, o coração. Não gira nas calhas de roda. No fim do poema, esta frase é como um encolher de ombros. Uma desistência. Belo remate bem composto (socialmente bem composto, intelectualmente aceitável, digamos assim), para quem antes tanto transgrediu, Fernando Pessoa. Bela saída, para quem lançou uma bomba. Depois de disparar o obus saio encolhendo os ombros. Já que tudo é nada e o infinito nos trespassa, porque não encolher os ombros? Deixem-me, deixem-me. Sabes que há perfis que estão no silêncio. Quem tu és nunca se diz. Seres semi-nus de convenções passeiam nas ruas da cidade. Nas ruas da cidade são gente. Figuras andantes. São reais e aqui quando escrevo serão já ficção? Serão ainda reais, se não estiverem mortos? Aqui desejo que andem eternamente pelas ruas da cidade. Enquanto houver ruas, cidades e gente que ande por elas e leia palavras como 'ruas', 'gente', 'cidades'. Será? 

Para Kant existiam as coisas que podem ser conhecidas. Digamos, com o nosso vocabulário moderno, o mundo material, que tantas vezes identificamos com a realidade. Essas coisas são as coisas de que podemos ter uma experiência. Coisas que podemos ver, sentir, medir, pesar, experimentar e cuja experiência pode ser repetidamente verificada e partilhada. Com os progressos da ciência e da tecnologia, o mundo material tem-se expandido de um modo surpreendente e notável, o que deixaria Kant muito possivelmente semi-louco de alegria. Coisas que antes pertenciam ao domínio da especulação, como as partículas infinitamente pequenas da matéria, imaginadas há mais de dois mil anos por Epicuro, são hoje factos da realidade experimental. Também a minha imaginação da alegria de Kant pertence ao domínio da especulação. Se Epicuro entrasse hoje num acelerador de partículas, como se sentiria?

Segundo Kant, para além dessas coisas reais, de que se ocupa o entendimento (talvez a faculdade da razão que o senso-comum propriamente identifica como razão), existem as ideias da razão pura, que no entender de Kant são absurdamente escassas (apenas três), mas suficientemente avassaladoras para conduzirem ao delírio qualquer espírito pragmático que por elas se aventure. O mundo como totalidade (hoje diríamos, o cosmos); Deus; a alma ou, dirás tu, minha amiga, seres semi-nus de convenções, que passeiam na cidade, como nós.

Que outro modo teremos de pensar e conhecer o avesso do corpo a não ser por intermédio da arte, do amor, da poesia, da literatura e da ficção, talvez da filosofia? Não deve ser errado afirmar que nos apercebemos da alma uns dos outros sempre por intermédio de recursos muito afins às técnicas da ficção. Há a expressão dos rostos, que muito engana. Principalmente quando especulamos sobre o que poderá motivar certo rubor, certo constrangimento, certo baixar dos olhos. Enganamo-nos frequentemente, em especial com as crianças, conhecidas pela sua transparência. Há a narrativa das acções, que temos de compor como quem escreve um romance. Com recursos de memória escassos e com julgamentos flébeis, assentes em estacas. Há quem se questione muito e quem não se questione rigorosamente nada. O certo é que a cada verdadeira questão se arriscam as entradas no caos. E não só as entradas no caos, por vezes algumas formas de loucura e de delírio. Uma questão é sempre um desabamento. Por isso podemos compreender aqueles que em termos de pensamento se comportam como comodistas, dogmáticos e até inertes. Será muito possivelmente um regime de sobrevivência. Talvez o velho instinto biológico de manter o dispêndio da energia do sistema no mínimo, uma ecologia natural. Eis uma defesa da estupidez. Se formos juízes de factos pouco sobra do tanto que é poeira. Valem muito as sensações de pele, a intuição, certas visões absurdas. Uma via paralela, mas não descartável. Há a interpretação das palavras, os rastos dos diálogos, que recompomos com dificuldade. Enfim, o que sobra? A ficção como alternativa da técnica? A ficção como andaime para uma técnica futura, para um conhecimento futuro? A ficção como um trilho do desejo, porque a todo o conhecimento, o desejo o precede? 

Não é o coração que gira. É a alma. E ainda não temos outro modo de a tratar. De certa forma, avançámos mais em relação aos corpúsculos e ao mundo como totalidade.

Contraponto para Isabel Aguiar (8)

 

Orlando I, António Pizarro e Artur Borboleta.

Com o tempo, vão conhecê-los. São muito diferentes. Parece até que nunca poderiam ser amigos. Orlando com aquela expressão maliciosa. Quem é que me lembra? Em parte, o actor John Malkovich, especialmente nas Relações Perigosas. Mas apenas numa certa tonalidade da expressão, porque o rosto é latino, os cabelos e olhos negros, penetrantes e jocosos, a figura pequena e um pouco atarracada, sensual. Já o António, fino, franzino, pálido, um pouco esquálido, preocupado, sofrido, atormentado. Qualquer coisa de querer ser invisível, de querer passar despercebido, de nunca precisar de nada. O Artur? Nefelibata, fora de tudo. Olhos azuis, cabelos muito louros, quase esbranquiçados. Figura pequena, infantil, quase menina. Aquele infinito de criança no olhar desprendido, desapegado de tudo, e contudo alegre. Uma doce indiferença em todos os gestos. E destes três quase que não há história, apenas livros.