Antecâmara

Sonho CCXCIX 


Naqueles dias que então corriam, tudo parecia estar mal e tomar a figura de uma tragédia, mas a partir do momento em que lhe apontaram a ponta do fuzil à testa, bem no meio dos olhos, tudo isso adquiriu de repente um aspecto de paz e felicidade excelsas. Foi forçada a recuar, diante da arma, divisão a divisão, andando de costas, até que se encontrou numa daquelas salas imaculadamente brancas e com um vidro de observação, como se vêem nos filmes americanos, no interior de certos asilos que são também estabelecimentos prisionais. Sabia que estava condenada à morte, mas tudo o que não queria era morrer. Ficou ali, semi-despida, e pôde verificar que atrás do vidro estava um dos três amores da sua vida. Seria possível que ele a tivesse condenado a estar ali, que fosse responsável pelo exército e pelos homens de baioneta? Parecia que não, afinal. Observando melhor, podia verificar que estava inconsciente, semi-despido e como se estivesse entalado entre paredes. Seria R., D. ou F.? Não conseguia distinguir as feições do seu rosto, que eram quase desconhecidas, mas, ainda assim, infinitamente familiares. Como era possível, se o rosto era tão nítido, tão belo, tão jovem e tão definido? Em que tempo estariam agora? Teriam já morrido? Seria a vida depois da morte? Não. Não podia dizer quem fosse. Uma angústia difusa e imensa invadiu-lhe o coração, uma dor que parecia espraiar-se para além das galáxias. Como suportá-la? Com que grito? Afinal ele era louco, tinham-lhe vestido um colete de forças. Estava ali, como um bebé no ventre da mãe, todo encolhido, e parecia prestes a nascer. Deus queira que nascesse, pensava ela, que nascesse rapidamente. Não suportava vê-lo ali. E também não queria morrer. Toda a angústia lhe parecia agora suave e mesmo alegre, comparada com a antecâmara da morte.