Que poeira brilhante e esparsa existe




Que poeira brilhante e esparsa existe,
por aqui, nas atmosferas diáfanas
e nas cores que giram em danças átonas,
diz-me que poeira tão fina existe,

por aqui, por onde todos andamos,
e que coisa é nos olhos o esplendor
que nos varre e este estranho fervor
com que de súbito às cores rezamos.

Diz-me, diz-me de onde saltam os olhos
com que nos olham tantas coisas vivas,
quiçá mais vivas ainda que nós,

sérias, dançantes, as cores acendidas
com que ardem tanto estes deuses novos,
diz-me, que poeiras são estas vivas?





Igor Andropov


O caminho menos percorrido

Sonho CCXCV


Como as estradas à superfície da terra se tinham tornado intransitáveis, havia agora estradas debaixo da terra.

Essas estradas, como os vários andares de um parque subterrâneo, sobrepunham-se umas às outras como folhas de um livro ou placas de massa folhada num mil-folhas.

As estradas de cima, mais perto da superfície, eram apertadas e estreitas e estavam igualmente congestionadas.

As de baixo eram largas, estavam desimpedidas (quase vazias) e nelas circulavam (embora raramente) apenas ambulâncias e carros de pronto-socorro.

Podia ver todas essas estradas em corte, num diagrama que me era apresentado por um engenheiro.

- Por aqui circula-se muito bem. - dizia ele.

Eu circulava por ali, de facto, mas com uma angústia enorme.

Oprimia-me saber-me tão longe do céu e, de certo modo, tão perto do inferno.

Onde estava a minha coragem?

Não era com essa virtude que me arriscava pelo caminho menos percorrido.

Que seria de mim, se a terra tremesse, ou se alguma parede desabasse?

Haverá destino pior do que ser enterrado vivo?

Circulava em alta velocidade, por um desses túneis futuristas, brilhantes e redondos, sem vivalma à vista.

Poderia ser confundida com uma virtude, essa bravura, mas era mais uma mistura de orgulho com não sei que teimosia ou necessidade de experimentar andar por ali naqueles caminhos, com o ponteiro da velocidade no máximo.



Sobre a tortura

Sonho CCXCIV



Não há como descrever a sessão de tortura que ocupava a visão do sonho.

Depois de muito sofrer, sem tréguas, a dor de Anaïs D. transformou-se em prazer, num puro prazer inqualificável que transcendia o corpo como um vento que passasse por ele e que transcendia todas as fibras da sua carne para ser apenas um fluxo inominável e abstracto, uma onda sem nome e uma libertação que a deixava como um raio de luz flutuante ou um feixe de partículas esvoaçantes sem alma.

Os nossos recursos são infindáveis.

Será que até a morte podemos transformar em volúpia?

Agora era possível ir à praia de noite, porque as praias estavam iluminadas com amplos e gigantescos holofotes que substituíam a luz solar. 

Bela maravilha.

Em 1508, em Estraburgo, também coube aos milhares de miseráveis famintos dançar até à morte.

Shakespeare chamou-lhe "praga dançante".

Presentemente, muitas meninas passeavam os gatos ao colo, na via pública, como se fossem cães.

O salto

Sonho CCXCIII



Estávamos naquela parte das aulas de ballet, no fim, quando o corpo está quente e maleável e fazemos saltos variados e rápidos traçando diagonais pelo comprimento completo da grande sala, uma aluna de cada vez.

Pode faltar-nos o ar, e até a força, mas nunca o entusiasmo.

E de resto há sempre, como no depósito de gasolina depois de soar o alarme, mais um pouco de ar e de força (e muito mais do que esperado, na verdade).

Desta vez, porém, em vez de começar o grand jeté com um chassé, eu lançava-me numa grande corrida e saltava no ar com tanta força que conseguia flutuar dois metros acima do chão, com as pernas em split.

O que era aquilo? Uma sensação de voltar a ser pássaro?

Quando fora afinal esse tempo - o tempo de ter sido pássaro?

Em que vida?

Estava tão embriagada com aquela alegria e o prazer de me sentir flutuar no ar, que começava a improvisar uma série de saltos totalmente inexistentes, uma mistura entre piruetas, sisonnes, glissades e fouettés, e em que me sentia, ora como se estivesse dentro de água, ora no ar, mas quase nunca na terra.

Era uma espécie de delírio.

Seria um sonho?

Que bela descoberta...

Entre a inocência e a perversidade, entre o esplendor e a dor, entre o olhar vivo do cosmos e o deserto de nenhuma atenção, há esse trilho inesperado a ser traçado - um caminho sem nome, ainda por inventar.

#5 Auto-retrato com disparo involuntário







da série "auto-retratos" (ou despedidas) -
ao tentar fotografar um título





O último segundo

Sonho CCXCII



Era uma história inaudita, mas verdadeira.

Uma engenheira, totalmente sozinha, tinha construído um foguetão com recurso a uma estratégia de crowdfunding.

O foguetão era muito giro, aos quadrados brancos e vermelhos.

A mulher montou-se nele e disparou pelo céu fora mas, como não era um grande piloto (segundo algumas opiniões), ou porque tivesse construído um foguetão demasiado potente, na altura de aterrar, aterrou com tanta força que a terra abriu uma fenda e se partiu ao meio.

Cada metade da terra desatou a rolar pelo cosmos, como duas metades de uma chávena que cai no chão e que saltitam até que a inércia se instale.

Parecia uma segunda versão em acto da expulsão do paraíso.

Não é que a mulher tivesse trincado uma maçã, mas, graças a isto, nós, os sobreviventes da humanidade, deambulávamos cada grupo por uma metade da terra rolando no universo, ao deus-dará.

No jardim do Casino Estoril, caíam grandes pedregulhos cinzentos do céu desconhecido. Não eram parecidos com nenhuma pedra que tivesse sido jamais vista à face da terra. Não sabíamos o que fossem, nem quantos minutos de vida teríamos ainda para rolar assim através do cosmos incógnito, mas, pelo sim pelo não, eu e todas as minhas crianças esgueirámo-nos para debaixo dos automóveis, para nos protegermos dos pedregulhos.

Parecia que os pedregulhos, afinal, eram leves como pedra-pomes.

Quando achei que tínhamos uma brecha, dei-lhes ordem que corressem em direcção ao Deck. As crianças desataram a correr e eu corri por último, para ajudar quem caísse, mas ninguém caiu: salvámo-nos todos.

No Deck havia duas portas - teríamos de seguir por uma delas.

Não fazia a mínima ideia de qual fosse a melhor escolha, nem tinha meios para decidir, mas, como não podíamos ficar ali, tínhamos de tentar qualquer coisa.

Se tomássemos o mau caminho, seria um doloroso e triste arrependimento o resultado. Se tomássemos o bom, quem sabe nos alegrássemos. 

Avançámos.

Talvez tivéssemos apenas uns minutos de vida. Talvez tudo explodisse no minuto seguinte. Talvez de repente toda a ordem das coisas conhecidas se revolucionasse de um modo inesperado e impensável e nós viéssemos a habitar um novo mundo... quem sabe?...

Era preciso ficar de pé e lutar até ao último segundo.

Sobre as palavras que não há

Sonho CCXCI


Do nada, num encontro de amigos, a Maria do Mar ficou apaixonada dos pés à cabeça.

Era qualquer coisa naquele rapaz, a sua magreza excessiva, os caracóis brilhantes e negros, um pouco disparatados, o rosto anguloso e medieval, os dentes tortos e os olhos brilhantes, qualquer coisa que lhe tocava como uma composição mágica ou um hieróglifo que trazia em si a promessa certa de uma máxima alegria e de um encontro transcendental, indecifrável.

Não, a Maria do Mar não podia ficar sem fazer nada perante aquele acontecimento raro e a graça daquele entusiasmo que nem sequer de dez em dez anos a visitava.

Correu pela Rua Garrett acima para saber o nome do rapaz que entretanto se despedira, mas ele era gago e tinha dificuldade em pronunciar o seu nome, o que o deixava envergonhado.

Isto só tinha o poder de a encantar ainda mais, contra tudo o que ele pudesse pensar.

Ele correu como uma criança a quem a vergonha faz fugir, e depois voltou:

- Io non mi sento solo. - era o seu nome.

- Estranho nome!... - pensou a Maria do Mar, a quem nunca passara pela cabeça que frases numa língua estrangeira pudessem servir de nome a alguém.

E desapareceu. Mas a Maria do Mar não desistiu enquanto não o reencontrou.

Descobriu que o rapaz era indiano e que ele e a sua mãe estavam à procura de uma nova casa para viver, por causa da velocidade com que agora se renovavam os contratos de arrendamento, sempre com rendas cada vez mais altas. 

A Índia moderna não tinha fama de ser gentil com as mulheres, mas a Maria do Mar, ainda assim, não quis ficar refém de um mero preconceito e foi ver com ele um espectáculo de danças tradicionais indianas.

As crianças dançavam em grandes serpentes de mãos dadas no meio da penumbra e da escuridão, enquanto as mulheres giravam com saias de fogo. 

A Maria do Mar estava maravilhada e queria dançar também, com as crianças e as mulheres.

Ninguém dançava para ser visto. Todos dançavam na semi-obscuridade de um campo aberto, numa quase escuridão perfumada pelo cheiro das ervas, do orvalho e da terra batida.

Tudo aquilo era tão fascinante que a Maria do Mar não parava de absorver e gravar tudo com os olhos, como se estivesse hipnotizada.

As orlas das saias das mulheres ardiam com chamas verdadeiras, mas elas tinham uma técnica para não se queimarem.

A Maria do Mar queria aprender, mas o rapaz estava verdadeiramente irritado com a Maria do Mar.

- Tu e esses teus livros, - dizia ele, com uma mal disfarçada impaciência - julgas concerteza que o amor que começa no estômago não passa para o coração?

Na meia luz não se viam as lágrimas nos olhos da Maria do Mar, que se levantou sem sequer dobrar o casaco.

Ela queria tanto não ter percebido nada do que fora dito, nem essas notas de impaciência naquela voz, que lhe diziam que ela já se tinha tornado insuportável, de um modo perfeitamente involuntário.

Queria tanto não sentir aquela espécie de opressão, como um laço de forca na sua garganta, mas de nada lhe servia esse desejo. Mesmo sem falarem, o pensamento dele já tinha treslido e julgado tudo o que ela pensava, sem sequer saber o que ela pensava, realmente.

Como era possível que viessem a entender-se?

Havia também aquele pequeno ódio contra o seu eixo de alegria, os livros. Podia ter sido isso ou outra coisa qualquer, talvez fazer jornalismo activista pelos direitos humanos, qualquer coisa, pequena ou grande, com que inventasse um sentido para a sua breve vida e que a mantivesse de pé, qualquer coisa com que valesse a pena viver e fazer uma pequena diferença.

E ali estava aquele pequeno ódio, como um veneno intolerável.

- Adeus. - disse a Maria do Mar. 

Mas enquanto se afastava ainda desejou com todas as suas fibras que ele quebrasse com boas palavras aquela triste coisa, que emendasse de algum modo aquele abismo e que a salvasse de uma lucidez tão crua.

Mas não houve nenhuma palavra.

A Maria do Mar tomou o caminho mais longo, à beira do mar.

O vento era frio e cortante, o ar perfumado de iodo e sal, as ondas erguendo a sua crista de espuma, no cinza brilhante e esbatido que unia o mar e o céu, sem linha de horizonte.

Que paisagem magnífica...

Aí podia caminhar-se entre o esplendor.



Sobre a culpa que frequentemente se atribui às mulheres

Sonho CCXC



Estavam todos num grande auditório, atulhado à pinha, quando um homem decidiu atacar a Maria do Mar.

O homem atirou-se à Maria do Mar e estava disposto a violá-la, mas ela desatou a gritar e a dar pontapés com a sua máxima força, até que conseguiu imobilizar o homem e metê-lo dentro de um saco.

Ele só queria o seu corpo, não queria a sua alma.

Na verdade, parecia ter alguma espécie de atraso mental.

De repente, o homem tinha ficado tão pequeno, que ela o tinha enfiado no saco das sapatilhas.

O homem era do tamanho de uma sapatilha, mas estrebuchava e dava coices dentro do saco.

A Maria do Mar entregou o saco ao seu pai, para que ele o levasse à esquadra.

Apesar de nem por sombras pensar libertá-lo, fazia-lhe impressão o sofrimento do homem dentro do saco.

Havia, entre aquela grande multidão, muitos que achavam que a responsabilidade pelo comportamento do homem era da Maria do Mar.

Porque a Maria do Mar tinha comprado umas meias de vidro demasiado baratas, que estavam rotas.

Uma relação de causa efeito que ultrapassava de um modo absolutamente radical toda a sua capacidade de raciocínio e especulação.

Tarântulas e convenções sociais

Sonho CCLXXXIX




F. de Riverday estava num pic-nic e decidiu juntar-se ao grupo das crianças.

Descobriram uma coisa muito divertida: a maneira como certos animais do parque brincavam com um buraco que havia na rede da baliza.

Os animais saltavam pelo buraco da rede em corrida, como se este fizesse parte de um circuito de obstáculos para cavalos.

Riverday lembrava-se dos seus encontros inesperados com animais, ao longo desse doloroso e malfadado Verão. 

Não se lembrava de alguma vez ter sofrido tanto, nem de nunca lhe ter doído tanto o peito e o coração, ao ponto de lhe parecer que iria adoecer.

Faz parte da natureza humana que o mais depressa possível nos esqueçamos dos sofrimentos passados.

Estava convicta de que todos esses encontros teriam um significado, mas ela não tinha meios de o descortinar.

Seria o universo em urgência a tentar transmitir-lhe alguma coisa?

À porta de casa, um coelho.

À beira do mar, uma serpente.

De novo à porta de casa, um pássaro morto.

Poisada no chão da berma da auto-estrada, uma águia, bem viva e alerta.

Pendurada do seu cabelo por um fio, uma aranha.

Era como se tocasse difusamente nas franjas de um conto encantado, e agora, no sonho, todos esses animais saltavam pelo buraco da rede.

Ela e as crianças contemplavam-nos, maravilhados, mas os adultos não percebiam a causa de tanto maravilhamento.

- O que estão para ali a fazer, especados? O que estarão a ver? - perguntavam eles.

De repente, aparecia uma funcionária do zoo, num grande alarido.

Tinha fugido uma das sete tarântulas que o zoo mantinha em exposição.

Riverday sempre detestara zoos. Depois da primeira visita, em criança, nunca mais fora capaz de lá voltar, para ver animais enjaulados.

Ficava contente pela tarântula.

No meio do silêncio geral, a F. de Riverday disse:

- Ai...

O que a deixou muito mal colocada perante o grupo, pois não era suposto que se fizesse nenhum comentário do género, muito menos dizer «Ai».

A Riverday voltou a sentir aquela velha perplexidade infantil que sempre sentira perante o comportamento de todo o tipo de massas, fossem elas as grandes massas de guerra, das classes, dos povos em marcha ou do consumo, ou fossem as pequenas massas das famílias e de outros grupos numericamente mais singelos.

Como poderiam as pessoas assim em matilha desejar as mesmas coisas, subscrever as mesmas opiniões e repetir os comportamentos uns dos outros, nessa estranha mecânica da reprodução social, que garantia, no fundo, a coesão das estruturas, mas também o seu anquilosamento?

Não há dúvida: seria sempre uma espécie de pequeno pária.

O seu instinto de rebeldia e liberdade extravasava por todos os poros.

As sapatilhas

Sonho CCLXXXVIII



Enquanto arrumava as gavetas da cómoda que viera de Macau há quase cem anos atrás, descobrira, totalmente esquecidos, vários pares de sapatilhas para dançar. 

Como pudera esquecer-se de um tal tesouro?

Havia sapatilhas mais macias que eram perfeitas para fazer meia ponta, outras que eram boas para girar e outras para escorregar. Havia ainda umas mais rijas e tesas que pareciam maravilhosas para os equilíbrios. 

Todas as sapatilhas estavam bastante sujas e gastas.

Faziam lembrar uma fotografia das sapatilhas do Nureyev, num camarim, muito estragadas.

Como pudera esquecer-se das sapatilhas, numa casa tão meticulosamente arrumada?

Como pudera esquecer-se de tantas horas da sua vida?

Havia talvez, na casa e em si, um caos que transcendia a sua consciência, de um modo profundo e irrevogável?

Seria talvez urgente tomar uma resolução, fazer qualquer coisa, inventar uma estratégia?

Inventar um novo mundo?

Dentro de si havia uma segurança que se desmoronava como terras em derrocada, como cartas dispersas no vento, para nunca mais.

Havia uma inocência que nunca mais poderia ser recuperada.

Porque há uma estranheza avassaladora quando algo aparentemente insignificante nos faz balançar entre a vida e a morte. Entre dobrar a roupa limpa e arrumá-la, nessa luta diária contra a entropia que parece querer instalar-se em tudo, subrepticiamente - ou diluir-nos na escuridão, para sempre.

O homem, a cama, a mulher e a amante

Sonho CCLXXXVII





Um homem queria deitar-se na cama com a mulher e a amante, mas a cama era muito pequena. 

- Esta cama mal dá para a tua mulher. - dizia a amante - Como queres que me deite nela?

A cama tinha apenas um metro.



Soneto II





Que bom seria se certos amores
fossem como a lagarta Jack Bauer
e num só dia pudessem arder
esvoaçar e morrer... sem outras dores.

Ágil, fugaz, doce vida instantânea...
porque não o ritmo da borboleta?
Viver em frustre escala de cometa,
sem traço ou tempo, a vida espontânea?

Mas não... não é essa a lógica crítica
que às vezes rege a máquina volante
do amor e suas acres abcissas.

Afinal, quantas vidas são precisas?
Uma vida não basta, breve instante,
para apagar de um só golpe o que fica.






José Gil sobre o livro "Alma de Rapariga"


A paixão do infinito

(Anotações sobre Alma de Rapariga de Adriana Crespo)


“Quero ter, do infinito, a paixão” (p.49)


1.   É um livro incandescente. As palavras ardem dizendo a vida intensa que as faz surgir: os conceitos e as imagens ora voam, dançando em êxtase e deslumbramento, ora entram em queda livre, estilhaçando-se, perdidos. É o diário dos anos 80-81 de F. de Riverday. A autora do Prefácio, que assina A., descreve-a como uma rapariga com “alma de índio” e de uma “índole indomável e selvagem”. E resume assim o diário: “Cume da dor que acompanha a visão insuportável do absurdo e da impossibilidade de trazer às coisas uma lógica e um sentido compreensíveis”. É a intensidade desse caos, mas também os momentos de paixão e júbilo, que incendeiam a escrita de F. de Riverday.

2.  O poema que Orlando dedica a Riverday, seu antigo amor, condensa em poucos versos os problemas e conflitos do diário. Começa, paradoxalmente, à maneira de Alberto Caeiro, com o anúncio do que parece vir a ser a calma constatação de uma evidência: “Olhas para uma árvore e que vês tu, / Riverday, quando olhas para uma árvore?”. Mas logo vem um outro estilo, mais próximo de Álvaro de Campos e de Pessoa ortónimo, e depois, a terminar, a placidez de Ricardo Reis. Longe de esclarecer a proliferação heteronímica que este livro manifesta (surgem personagens como A., Maria do Mar, de Riverday, Orlando I, António Pizarro e Artur B.), a conjugação de estilos do poema de Orlando complica o entendimento: porque, se a referência a Pessoa o aproxima de Adriana Crespo, a maneira como esta se serve dos estilos pessoanos situa-a diferentemente, marcando a sua autonomia. Por exemplo, o estilo de Caeiro não traduz a serenidade de um viver imanente à natureza. Pelo contrário, o desassossego que suscita o absurdo da vida levanta o fantasma de uma transcendência estranha, o da própria falta de sentido de tudo, que assombra o diário, do princípio ao fim.

3.  As primeiras páginas assinalam a mudança de nome daquela que passa a chamar-se F. de Riverday, aos 17 anos. Um acontecimento maior acompanha a adopção do novo nome, inaugurando a viagem interior e exterior que o livro descreve: a fuga de casa. “Hoje deixei de estar exilada entre estranhos que falam uma língua estranha. Fugi de casa.” O que significa esta fuga? A possibilidade de ser múltipla, de se transformar, de encarnar outras personagens. Ser rapariga é ser móvel e “inclassificável”. Vai arranjar um emprego adequado, ajudante de um mágico, num circo. Ser múltipla é ser ela própria, ser rapariga, não ser “homem” ou “mulher”. “Infelizmente, há muitos que querem mutilar as raparigas. Homens e mulheres, essas imensas e ininterruptas hordas de frustrados que percorrem todos os mundos, desde a Babilónia bíblica até à Índia do séc. XXI”. Começa então a descrição do processo de transformação do devir: movimentos do corpo, sensações de dor, corpo de dor e o que com ele se deve fazer - “uma arte de faquir”. Descrição do devir-outro, devir-animal ou devir-estrela, em combate com os entraves interiores para soltar as forças de metamorfose. Relato minucioso, num registo técnico-poético-metafísico.

4.  “Onde irei buscar o deus que mantenha de pé a minha alma?” F. de Riverday interroga-se sobre a legitimidade do seu próprio desejo de devir-rapariga, de viver uma positividade que retire ao mundo o seu absurdo, quando tudo à volta é “sofrimento e horror” (p.19). Perguntar isto equivale a perguntar pela existência de Deus. A discussão é filosófica e muito interessante; e inconclusiva. Inconclusiva porque, tendo julgado encontrar a resposta que lhe permitia dispensar Deus, pergunta: “E depois?” Depois, há ainda a morte. A discussão sobre a existência de Deus volta várias vezes, ao longo do diário. A propósito do corpo e da solidão, Riverday refere a proximidade e o fosso que liga e separa o infinito da fé, sempre através de imagens e situações concretas, que dão uma grande força à sua escrita. Será que  a autora é aí, uma escritora “animada pela filosofia”, ou uma filósofa que gosta de metáforas, de imagens e figuras de estilo? Ou outro tipo de criadora, com outro tipo de escrita?

5.   Pode parecer que F. de Riverday se debate apenas contra angústias e conflitos interiores. Mas um outro dilema, entre o interior (a alma) e o quotidiano exterior atravessa o seu diário. É que ela trabalha num circo que viaja através da Rússia, e o embate com as tarefas quotidianas, a rotina e a falsa paz que esconde o sofrimento e a morte, acaba por se tornar insuportável. “O mundo é demasiado. Demasiado grande. Demasiado violento. Demasiado caótico. Demasiado indiferente. Demasiado. O mundo é simplesmente demasiado. Onde está um pedaço de terra?” Descobre-se, então, que os problemas existenciais e metafísicos procuram resolução num pedaço de terra, num mundo pequeno. Será “a terra prometida”? Será que o mundo que salva, o mundo das religiões e da filosofia, se reduz, na cabeça de cada indivíduo, mesmo nómada ou exilado (“como um judeu”), a um pedaço doméstico de terra, quintal ou jardim “só para mim”? A pergunta está implícita nas interrogações de F. de Riverday.

6.   Não vou expor o percurso interior de Riverday, nem o seu périplo pela Rússia. O devir- rapariga segue um trajecto correspondente ao do périplo do circo, a viagem pela Rússia é a viagem do devir-rapariga. O mapa da viagem assinala os sítios geográficos dos acontecimentos existenciais. Acontecimentos intensivos: os sucessivos trechos do livro, correspondentes às diferentes datas do diário, parecendo desconexos, marcam os picos de intensidade, de densidade, e de distensão e atonia, que irrompem aleatoriamente na vida da rapariga. Mapa de funcionamento de intensidades, isto é, diagrama. Toda a história narrada leva o leitor a percorrer este diagrama, com os sobressaltos, o pânico, os anseios e os voos extáticos que o fazem pulsar. E o ritmo que os entrelaça: a dança não é só um tema recorrente da prosa de Riverday, mas impulsiona-a constantemente. Os jogos com o corpo compõem coreografias, “a escrita é a minha dança”. “Tenho um motor chamado alma. / Um combustível chamado desejo”.

7.  Abstenho-me de comentar as ideias e argumentos (porque o texto fervilha de argumentos) com que a autora descreve os conflitos da sua “alma de rapariga”. A sua riqueza e número impedem-me de o fazer. Limitar-me-ei a analisar brevemente um problema que atravessa todo o texto. 

Logo no início do poema introdutório, com aquele estilo sem estilo característico de Alberto Caeiro, Orlando dirige-se a Riverday assim:

“Olhas para uma árvore e que vês tu, 
Riverday, quando olhas para uma árvore?
Não olhes demais porque assim 
ficarás presa por um feitiço
ao novelo de tudo o que pensas 
quando olhas para uma árvore”

Novelo infinito de pensamentos, sempre em excesso relativamente ao mundo e às sensações. Se evocarmos os versos do Guardador de Rebanhos em que Caeiro diz que os seus pensamentos “são todos sensações” (poema IX), apercebemo-nos do que separa Riverday do poeta nominalista. Como ela própria escreve, “ao contrário de Pessoa, a consciência não me aflige, liberta-me” (p.105). (consciência e pensamento identificam-se aqui). Porque é que a liberta?

Essencialmente, porque os pensamentos, para Riverday, longe de matar as sensações, intensificam-nas. Pensar é vibrar intensamente. Poder-se-ia afirmar que, enquanto Caeiro pensa  com os sentidos, rejeitando o pensamento abstracto que se separa da vida como uma doença, Riverday sente com o pensamento. Seria exacto, se o regime do sentir em Riverday não fosse mais complexo. Por exemplo, as sensações podem desprender-se dos pensamentos, entrando num regime de angústia e desespero, como na experiência da náusea, náusea de “viver em tudo a malha do excesso, […] de não poder mais habitar aqui”, de “suportar o corpo”: “a ansiedade acumulada desceu dos pensamentos para a carne, desceu das emoções para a pele...e cada miligrama da pele… está contaminado pelo medo, a dor sem nome, a dor do indefinido.”

Vibrar com o pensamento tem, pois, os seus riscos. Se nasce um dilema, ou um conflito entre ideias, o sentir é puxado para duas direcções contrárias, espartilha-se, dilacera-se e o sofrimento irrompe, insuportável. O drama das sensações vem então do drama do pensamento. Mas quando Riverday entra na música de Bach ou num filme de Tarkowski, o afecto parece comandar o pensamento e os dois formam uma corrente única de intensidades, para além de qualquer conflito existencial.

O maior dilema não virá, afinal, da oposição entre estes dois regimes do pensamento e do sentir? No primeiro, os grandes conceitos absorvem e transformam a afectividade, que reenviam depois; no segundo, o afecto estende-se ao corpo e ao pensamento para formar um plano único, sem dilemas nem sofrimentos. Ora, pode acontecer – e muitas vezes acontece, em pensadores e poetas - que o primeiro regime se rebata sobre o segundo, o engula e o reduza a um dos polos de um dilema mais vasto: que vale dançar com Shostakovitch, voar na mística do sexo, que vale o devir-rapariga e o júbilo de sentir pensando, se isso não dura senão um instante, se somos finitos e morremos? “Porque é que nos cansamos e morremos, se sentimos que somos eternos?” “Porque é que os nossos ossos não aguentam para sempre o nosso corpo suspenso e andante, nem a pele, nem a carne, nem nada do que é real e possível de ser tocado em nós? […] Que triste!...Ter um limite!…” (p.87)

Olha-se agora, de fora, e de longe, para o plano das fortes intensidades do devir, e, em nome da finitude e da morte, diminui-se-lhes o teor ontológico. Fazendo-se mais vastos do que a vida, os grandes conceitos abstractos mataram as sensações. Criou-se um ponto de vista com que se olha para o plano de Tarkowski, para a alegria de Shostakovitch, que não admitiam pontos de vista. Ponto de vista da finitude que pára e dissolve o movimento do infinito. A terra tornou-se um deserto, o deserto de Messiaen onde tudo fala “numa língua estrangeira”, onde Riverday não passa de “um triste animal a quem roubaram a sua terra”.

Será esta conclusão uma fatalidade do pensamento ou da paixão do infinito, uma ilusão armadilhada que leva o excesso das intensidades a voltar-se contra si próprio numa suprema auto-condenação? Terá sido por isso que Riverday acabou por se suicidar?

8.   Parece impossível não encarar este suicídio como o desfecho lógico do diário, até porque o último capítulo quase o anuncia. O suicídio de Riverday muda a percepção que a autora do livro procura induzir no leitor, a saber que Alma de Rapariga é o título só de um diário. Na verdade, é o título de toda a série de textos, do Prefácio de A. mais o poema de Orlando mais o manuscrito de Riverday. Porque o suicídio deixa um branco: entre a última data do diário e a data (desconhecida) da redacção do Prefácio passou-se um tempo da vida de Riverday de que se desconhecem os acontecimentos, a não ser, precisamente, o suicídio. Ao assinalá-lo, A. prolonga o texto do diário, combina-o com o suicídio e leva o leitor a perguntar: “Terá sido por tudo o que nos é relatado e por tudo o que isso revela da “alma” de Riverday que ela se matou?” Ora, o Prefácio continua o diário de três maneiras, pelo menos: evocando um outro suicídio que sucede ao de Riverday, o de Maria  do Mar, descrevendo o amor desta última e de Orlando no seu fracasso em salvar Riverday, e inscrevendo-se ela mesma, A., na senda da autora do diário. Comparem-se apenas estas linhas, “E F. de Riverday, sim, fez esse caminho de estacas e lianas suspensas sobre os abismos para entrar no caos, mas não cuidou de salvar o caminho de regresso”, com o que escreve A., uns parágrafos mais adiante, falando dela própria: “Em cima da mesa aposto todo o meu pecúlio. Arrisco tudo. Até hoje este caminho de estacas, como as insignificantes ervas dos campos...”, etc. O caminho de A., na escrita de A., continua o diário de Riverday, na escrita de Riverday. A. é Riverday, como o são Maria do Mar e Orlando, e os outros personagens referidos. Afinal, o Prefácio é todo ele dedicado a mostrar como Maria do Mar, Orlando e A. estão estreitamente implicados na vida de F. de Riverday. E o livro, Alma de Rapariga, compreende os escritos de todos estes autores.

Vemos como o suicídio da diarista constitui um acontecimento, exterior ao diário, que vem condicionar intimamente a sua leitura. É a rede complexa da heteronímia de Adriana Crespo que se enovela (e se desvela) assim, imperceptivelmente.

9.    Uma última nota sobre os desenhos que acompanham o diário: o seu encanto vem certamente da sua leveza e simplicidade. Não ilustram nem comentam os conteúdos dos capítulos, instauram, num outro regime que não o da escrita, o mesmo ritmo ágil do voo infinito que arrebata Riverday para fora de si mesma.


José Gil
Oeiras, Palácio do Egipto
Apresentação do livro Alma de Rapariga
28-10-2019



Sobre a desigualdade entre os homens e as mulheres

Sonho CCLXXXVII



Um homem pediu uma mulher em casamento e, como foi recusado, decidiu destruí-la.

Ambos foram colocados num ringue de boxe - e começaram a lutar.

Apesar da diferença de peso, a mulher era mais ágil e conseguia defender-se de todos os golpes.

Enraivecido, o homem decidiu então dominá-la com o próprio peso.

Colocou-se de pé em cima das cordas do ringue e, tomando balanço, lançou-se sobre o corpo da mulher.

Mas a mulher era extremamente resistente e escapava ilesa de todas as investidas, escorregando debaixo do corpo do homem como uma enguia.

A dada altura entrou no ringue um tigre e o homem, por engano, atirou-se para cima do tigre.

Ficou no chão uma massa ensanguentada de vísceras e de pêlo, como se vê na estrada quando um animal é atropelado.

Por sua vez, o homem ficou com a cabeça separada do corpo.

Salvara-se felizmente um outro tigre, que passeava tranquilamente pelo ringue.

«Nunca mais voltará a ser o mesmo.» - disse o árbitro - «Quando lhe colocarem de novo a cabeça, nunca mais será capaz de articular uma palavra.»

Mas a mulher só sentia piedade do animal - não do homem.

Ao menos, olhando para o tigre que se salvara, conseguia segurar o coração ao alto, muito acima daquela torrente poluída que ameaçava contaminá-la com uma tristeza infinita.

«Gostavas de casar antes com este?» - perguntou-lhe o árbitro, apontando para um segundo pretendente. - «Ele gosta de conversar contigo.»

«Pobre homem!...» - pensava a mulher em silêncio - «Ama o que imagina, não o que conhece.»

«Estou bem assim. Não me quero casar.»

Foi o que disse quando saiu do ringue saltando por cima das cordas com a mochila às costas e o casaco na mão.




O amor das nossas vidas

Sonho CCLXXXVI



Do ponto de vista da razão pura, poder pronunciar um tal conjunto de palavras é porventura uma das coisas mais paradoxais e extraordinárias da vida do pensamento humano.

O que são as nossas vidas?

Esses dias infinitos e esquecidos, que começaram não nos lembramos onde e que acabarão não sabemos onde, quando chegar o dia da nossa morte, quem poderá dizer o que foram?

Talvez um deus contemplativo que tenha connosco um pacto eterno acompanhe a nossa alma com a intimidade de uma visão total e absolutamente lúcida, quem sabe?

E nós, num desses peculiares momentos em que nos sentimos eternos, a nós e aos outros, e parece que a nossa visão trespassa as coisas como um diamante, com uma evidência aguda e esplendorosa.

Por vezes, na solução ou na saída de uma grande crise, tece-se uma epifania geral da descoberta e do sentido, uma revisão de todas as coisas, que mudam de posição como massas e partículas numa explosão de estrelas. 

Outro caso é quando, por uma série de operações obscuras e vislumbres mágicos e misteriosos, percebemos que alguém pode ser o amor das nossas vidas.

Nesses momentos agitados e velozes, maravilhosos, críticos e tantas vezes trágicos, é que sentimos sem sombra de dúvida o que são as nossas vidas, de onde vêm, para onde vão e porque as vivemos, ainda que, se nos perguntarem, continuemos a não ser capazes de dar uma resposta articulada a estas questões.

Sabemos que é simplesmente assim e temos uma estranha visão total que não podemos descrever nem relatar, a não ser, talvez, escrevendo uma imensa história peculiar, um infinito romance polifónico onde a cada detalhe seja dado o devido esplendor, a cada episódio de caos a profundidade do absurdo e a tudo, no final, essa lucidez ridente e diamantina da visão que vê.

No sonho, estávamos numa imensa praia deserta de areias finas, eu e o amor da minha vida, sentados  frente a frente como duas crianças que estivessem a fazer um buraco na areia.

A areia caía da minha mão direita, como o tempo de uma clepsidra.

- Que areia tão fina!...

- Ouves este silêncio?

- Oiço.

Pois era como se toda aquela paisagem colorida e brilhante, o imenso e cintilante areal e o mar e as palmeiras respirassem.




Liberdade

Sonho CCLXXXV



Tratava-se de uma instituição que reeducava raparigas e cujo objectivo geral consistia em cortar-lhes a cabeça.

Não que as raparigas morressem, depois de cortadas as respectivas cabeças.

Simplesmente tornava-se possível colocar e tirar as cabeças, conforme a necessidade.

No enorme refeitório onde comiam mais de mil raparigas, chegavam à minha mesa duas a quem tinham acabado de cortar a cabeça.

Uma delas decidira colocar a cabeça em cima do prato, separada do corpo.

Dizia: «Prefiro comer assim.»

Mas como poderia comer assim?

A outra rapariga, que era extremamente bonita, tinha a cabeça colocada no corpo, e via-se uma linha de crosta no lugar em que se operara o corte. 

Tudo o que via era de uma nitidez extrema e ofuscante, colorida e aguda, que me varava dos pés à cabeça, mas não conseguia fechar os olhos.

- Não dói? - perguntava eu.

- Não. - respondiam ambas.

Mas havia uma tristeza nos seus rostos, um pudor, ou uma espécie de vergonha, que trazia o relato de outra dor.

Dedicava-me a observá-las muito bem, com uma máxima delicadeza e atenção. 

Porque é que as vítimas ficam tantas vezes com a culpa e a vergonha dos algozes?

Não estava disposta a deixar que me reeducassem, mesmo que a reeducação fosse indolor.

Quando chegava a minha vez, dizia que não, que não queria que me cortassem a cabeça.

- Essa escolha terá as mais graves consequências. Não poderás ficar aqui, nem terás onde ficar.

- Está bem.

Regressava ao enorme refeitório onde ainda estavam todos, sabendo muito bem que o pior estava para vir.

Todas as outras raparigas, vendo que tinha sido chamada e que continuava com a cabeça ligada ao corpo, me olhavam com desconfiança.

Só que mesmo esse preço, o da exclusão, era pequeno, comparado com o outro que sabia vir a ter de pagar.

Apareceu o meu algoz, de olhos gelados e figura imponente, e fitou-me fixamente.

Como resposta, cuspi-lhe nos pés.

Defendia-me, com esse enorme orgulho que tinha, do grande medo que sentia.

«Que grande sofrimento se aproxima... Quem sabe não seria melhor deixar que me cortassem a cabeça... Ai!...»

Mas aquelas imagens coloridas das linhas de corte nos pescoços estavam fixas no interior dos meus olhos como fachos incandescentes, como pelourinhos de morte.

Com os braços abertos agarrei de costas uma barra das grades, como se estivesse sobre uma cruz, e gritei com todas as minhas forças, o mais alto que consegui:

- Deus!... Ajuda-me!...

Sabia por experiência própria que se clamasse com toda a fé e todas as fibras do meu ser, alguma coisa tremenda se moveria no universo obscuro para me salvar. 

Então saltei de repente para cima de uma dessas imensas mesas compridas e, empurrando o que estava em cima para o chão com os pés, comecei a improvisar uma espécie de rap

Logo um grupo de jovens negras e mulatas se juntou a mim e fizemos, não sei como, uma bela música, enquanto muitas pessoas na sala filmavam.

Enquanto dançávamos, éramos intocáveis. Nada nem ninguém poderia sequer assombrar a nossa inocência que era na verdade apenas um pouco desse elemento selvagem que tanto lutávamos por fazer resistir.

Era um mau poema, ora em português, ora em inglês, mas quem, em tal situação, poderia orgulhar-se de fazer melhor?

Não sou negro
mas é como se fosse
porque sou pobre
e tenho um pescoço

I am not black
But it's as if I were
Because I'm poor
And have a neck


Apesar da energia do ritmo e da intensidade com que dançávamos compensarem o mau que era a letra, tínhamos o tempo contado. 

Mesmo a uma fracção do fim da nossa dança, aproveitei aquele momento de distracção e, com um salto, voei para o chão e desatei a correr com todas as minhas forças, sem nunca olhar para trás.

Não há dúvida. Quando as forças são demasiado desiguais, a melhor solução continua a ser a mais antiga: fugir.

Já muito longe é que verifiquei que ninguém me perseguia.

Era só uma entre muitas raparigas. 

Mais cabeça... menos cabeça... que interessava?

Porém, tudo seria novo a partir dali.

A solidão, a incerteza e o desconhecido.

Sentei-me no chão e pude verificar que, nem sapatos, nem casaco, nem relógio tinha.

Como pudera correr assim tanto de pés descalços?

Tinha apenas umas leggings pretas e uma camisa branca de algodão que já nem tinha todos os botões, por causa da dança que tínhamos improvisado.

Mas tinha uma sensação de liberdade que quase me intoxicava.

Essa liberdade fazia com que sentisse uma força incrível.

E agora?

Hoje, na Gazeta de Poesia Inédita





Homenagem a Riverday,
de Orlando I






As visitas surpresa do outro mundo

Sonho CCLXXXIV


Tocavam à porta e era a avó Aethra Kaya.
 
- Avó!... - dizia eu. - Que boa surpresa!...
 
Estava com muito bom aspecto e um vestido comprido, muito extravagante, meio índio, com umas franjinhas.
 
Naquele momento, não me lembrava que a minha avó tinha morrido.
 
- Estás com muito boa cara, avó!... E um belo vestido!...
 
Certamente, com aquele vestido, já não se importava com o que diriam as suas amigas quando fosse tomar o pequeno-almoço à Garrett.
 
- E continuas gordinha, avó... Ainda gostas muito de comer?

- Sim, a gula entretanto não me passou. E tu? Tens aproveitado cada momento do teu dia?

- O melhor que posso, mas sinto-me em falta. Acho que poderia fazer melhor.

- No teu caso, já sabes o que fazer. Já descobriste a alegria. E não podes dar-te ao luxo de perder tempo. Onde estão os teus livros? Já escreveste tudo o que te passou pela imaginação? Não te esqueças que nenhuma dessas coisas que te apareceu na cabeça teve o que quer que fosse a ver com a tua vontade.

- São demasiadas coisas... O pensamento é demasiado rápido... Tchic, tchic, tchic... ele anda sozinho... dispara... e eu atrás, com uma lentidão infinita.... ele é uma máquina veloz e eu uma pobre caçadora de fogos ou de estrelas... apanho apenas uns restos de luz... umas fagulhas...

- Não te queixes. Apanhas o que podes. Do infinito, agarram-se umas migalhas, umas partículas. O importante é não desperdiçar tempo. A vida. Nem se deixar apanhar em armadilhas, dominações, quezílias, desgostos, morrinhas, coisas inúteis, futilidades, afectos tristes.

- Sou mais como um cavaleiro lutando contra dragões, avó, ou D. Quixote com os moinhos!... Às vezes caminho aos tombos... e os juízos são como uma chuva de meteoritos... oprimem-me!... Outras vezes condenam-me... e é tão difícil resgatar a liberdade... Mas luto sempre de pé e com determinação e coragem, que mais queres?

- Não podes ser complacente, nem contentar-te apenas com os bons esforços, porque o dia da tua morte há-de chegar. E quando partires e chegares, eu mesma te perguntarei: o que fizeste?

- Avó... observo que agora és livre... tens uma alegria desprendida, um fino humor nos teus olhos... és mais perspicaz... para onde foram a tua velha zanga e a tua tristeza?... Estás muito diferente, só pensas no que é mais importante. Aprendeste a colocar nos dois pratos da balança as manias humanas e o infinito das estrelas?

- Tive de aprender. E como tu és um pouco mais ilustrada, vim falar contigo. Ao menos que não tenham sido em vão tantas horas de leitura e tantas esgrimas, tantas vertigens e travessias do caos, tantos exercícios. Sabes que eu mesma te incentivei muito a ler, quando eras jovem, eu e a tua mãe, mas já antes tinha incentivado a tua mãe e as tuas tias, com os meus dotes de pedagogia infantil. Ficas sabendo que agora vai correr tudo bem entre nós.

- Sou como uma árvore, avó. Pode ser que o vento venha derrubar os meus ramos, mas mesmo assim darei fruto na estação própria. Resisto sempre.

- Rica menina. Estão cá todos? O tio João? O tio Manuel? O avô António? A prima Filipa?

- Pois estão!... Como chegaram todos aqui?... Será que tenho comida para todos?...

O que me espantava nessa gente toda eram os seus novos modos, que não tinham nada de preso, nem de oprimido, nem de infeliz.

Pareciam tão soltos, tão bem-humorados, tão libertos. Tinham passado para um plano de alegria e liberdade que lhes deixava, no olhar, aquele sub-riso, e, nos modos, aquele desprendimento.

Pareciam ter escapado, ao mesmo tempo, das duas mortes.

A que vem de fora e a que vem de dentro.

A que vem de fora ninguém a conhece.

É aquela que acontece aos outros, e a nós, pela falta que nos fazem os outros.

Mas a que vem de dentro, a morte da alegria e da liberdade e a intoxicação subtil a que os juízos e as ideias feitas do mundo nos condenam, essa, todos a conhecemos.

Eu via em cima da mesa uns pratos com nacos de carne cobertos de molho, talvez secretos de porco, e ficava muito contente por haver tanta comida, e ainda para mais tão deliciosa.

- Onde está a avó Constantina? - perguntava eu.

- A avó Constantina não pode ficar sozinha. Temos de lhe telefonar.

Não conseguia lembrar-me que tanto a avó Constantina como todos os outros estavam mortos.



Vicente Rodrigues - fotografia com telescópio
noite de 8 para 9 de Junho de 2019



 

Sobre as angústias irresolúveis

Sonho CCLXXXIII
 
 
 
Era um daqueles dias em que nada corria como planeado.
 
A meio da viagem, todos os carros ficaram parados.
 
Teria deflagrado um incêndio, uma guerra, uma catástrofe?
 
Tivemos de abandonar os carros, e continuámos a pé.
 
Andámos tanto a pé, que ficámos sem sapatos.
 
Continuámos descalços.
 
Por fim, chegámos a um sítio, uma espécie de café, onde se podia comer.
 
Tínhamos muita fome, mas a comida era repugnante.
 
Não consegui comer nada, e pensei:
 
«Qualquer dia como, mas hoje não. Não é assim tão grave.»
 
Também tinha muito sono, mas não podia dormir. 
 
Não conhecia ninguém e tinha medo de adormecer.
 
Que saudades do meu colchão macio e da minha cama de lençóis lavados!...
 
Enquanto reflectia sobre a precariedade de todos os bens da nossa vida, olhei para o pulso esquerdo e reparei que ali estava um relógio que em tempos perdera.
 
Era um relógio que pertencera a uma querida avó.
 
Também estavam no meu pulso duas pulseiras de ouro que em tempos perdera e que nem me lembrava de ter perdido.
 
«Olha!... Estas pulseiras!... As coisas da nossa vida de que não nos lembramos!...»
 
Ambas me tinham sido dadas por essa avó, quando era ainda uma criança bem pequena.
 
Uma delas tinha uma minúscula figa em ouro, para dar sorte, e a outra tinha pequenas contas de coral rosa.
 
Não conseguia perceber como é que aquelas coisas tinham vindo parar de novo ao meu pulso.
 
Era como se, num livro aberto, na página que mais me interessava, todas as palavras estivessem pintadas de negro.
 
Doía-me esta incompreensão como se estivesse à beira de compreender qualquer coisa que estava condenada a não compreender, e, por causa disto, lembrava-me de todas as coisas da minha vida que jamais chegaria a compreender.
 
Que dia!...
 
Ficamos diante de um mal-entendido insanável, de um golpe e para sempre, como se esse mal-entendido permanecesse insanável por toda a eternidade.
 
É incrível como um dia (que é uma coisa tão curta no tempo) nos pode lançar de um modo tão rude na angústia da imaginação negativa da eternidade. 

presque rien #1

 
 
 
 




 
A caminho da minha casa não existem coisas que não falem.
 
As nuvens falam e cada árvore,
cada um dos arbustos que cresce à beira dos caminhos
também fala.
 
Como é que falam se não é com palavras
aquilo que dizem?
 
Falam em quase nadas, em coisas rarefeitas
e impossíveis de nomear.
 
Falam talvez porque emitem afectos e presenças
como faíscas.
 
Como brumas ou como auras.
 
As janelas, as bermas dos passeios, as corolas das flores,
as oliveiras, os ciprestes, as luzes,
as passadeiras às riscas, os sinais de trânsito...
 
Falam com a alegria inamovível das coisas que estão de pé e que dizem:
«Estou aqui. Estou aqui.»
 
 
Queridas árvores que se erguem contra o vento

e que trazem nas copas o infinito e o esplendor,
 
que bom que é que haja luzes nas janelas.
 


O mar e as lágrimas

Sonho CCLXXXII



Era uma casa à beira-mar, com um grande alpendre sobre a praia.
 
Eu amava perdidamente aquele mar e a areia ardente, o calor do sol, as ondas e o cheiro intenso da água do mar.

Estendi a minha toalha sobre uma espreguiçadeira, para poder apanhar banhos de sol e mergulhar.

Queria ficar muito quente e entrar depois na água gelada, lentamente.

A resistência das ondas, os mergulhos e os saltos na espuma, a água fria e a luta contra as correntes, isso era o que mais apreciava.

Nesse dia porém o mar estava demasiado selvagem.

Havia ondas com muitos metros de altura.

As ondas começaram a aproximar-se da casa e, como um fogo de artifício, encheram de uma chuva de espuma o alpendre.

Ficou tudo molhado e, sem que ninguém se apercebesse, aproveitei para chorar.

Ninguém dentro de casa poderia perceber que chorava, nem porque chorava.

A casa tinha três piscinas.

Uma piscina interior ao lado de um ginásio, uma piscina exterior aquecida e uma piscina normal.

Não gostava de piscinas, muito menos de nadar em água quente como sopa.

Aliás, nenhum desses requintes contribuía em nada para a minha felicidade.

As piscinas talvez pudessem ser úteis para dar banho aos cães.

A casa tinha muitos quartos, muitos dos quais não conhecia.

Cada quarto tinha pouquíssimos móveis e estava decorado com uma sobriedade invulgar e, ao mesmo tempo, com uma delicada fantasia.

Quem seria o espírito tão original e fora do tempo que tinha composto aqueles ambientes tão suaves?

A maioria dos móveis e gavetas estava vazia.

Não era Lampedusa que dizia que, se conhecermos todas as divisões do nosso palácio, então não é um palácio?

O mesmo se poderia dizer da nossa alma.

Deambulava pelos quartos e descobria que apreciava especialmente um.

Era um pequeno quarto de paredes azuis muito escuras e duas portas lacadas de branco, sem janelas, com uma elegante cama alta de solteiro, em estilo neoclássico.

Respirava-se ali uma grande paz.

«Tenho de vir dormir aqui.» - pensava eu.

Sobre a cama estava um tabuleiro que tinha muitas cascas de maçã.

Certamente, alguém estivera ali a comer maçãs.

As ondas eram tão grandes e avassaladoras.

Não havia nada que se pudesse fazer.

No alpendre todo inundado, as lágrimas deslizavam no meu rosto, misturadas com o sal do mar.

Há dores que parecem estrelas a nascer, ou coisas a vir à luz.

Nunca se saberá o que se produzirá a partir delas.

E eu perguntava:

- São assim tantas, as minhas lágrimas? 

Com frequência, as frases feitas transformam-se em sonho

Sonho CCLXXXI


Num futuro distante, talvez no século XXII, algo de terrível se passava. 
 
À semelhança daquelas bonecas cujas cabeças se desmontam e são capazes de abrir e fechar os olhos, assim também as nossas cabeças se desmontavam e podiam trocar de corpo.
 
Atrás de cada cabeça, na nossa nuca, estava marcado o nome e o número do cartão de cidadão, para não dar azo a tragédias maiores.
 
A minha cabeça tinha sido colocada num outro corpo, o corpo de uma mulher que não era eu.
 
E eu dizia-lhe:
 
- Cuidado.
 
- Essa cabeça é minha.

- Esses pensamentos são meus.
 
- Não penses que são os teus pensamentos.
 
A mulher não se sentia capaz de viver com aquela cabeça, nem com aqueles pensamentos.

O seu desespero era de tal ordem, que estava prestes a suicidar-se.
 
- Não pode ser!... - dizia eu, muito alarmada com aquela decisão.
 
- Olha, nada disso és tu. Tem calma. Espera um pouco. Tudo se há-de resolver. Vou tratar de tudo, para que tudo regresse à normalidade. Viver é uma oportunidade extraordinária!...
 
Não sei muito bem quem falava, uma vez que não tinha cabeça.
 
Tudo o que não queria era perder a minha cabeça.