Sobre a inutilidade do arrependimento

Sonho CCLVIX


Estava prestes a entrar pela faustosa porta de um Hotel Palácio.
 
Do lado esquerdo da porta, perfilava-se, muito rígido, um porteiro com chapéu de coco e os cordões dourados que lhe saíam dos bolsos do colete.
 
Do lado direito, havia uma coisa que era uma espécie de respiradouro de automóvel gigante, que talvez servisse para fazer circular o ar.
 
Eu recuava bastante e, depois de uma bela corrida e de um salto mortal, lançava-me no ar e batia contra esse respiradouro de um modo realmente espectacular.

Em microssegundos, ainda com o corpo suspenso no ar, todas as minhas roupas pegavam fogo e se desfaziam em cinzas.

Não. Não quisera fazer nada daquilo, não quisera chocar contra o respiradouro e muito menos previra que as minhas roupas se incendiassem.
 
E não parecia que o porteiro se tivesse mexido, ou sequer virado a cabeça.
 
Caiam sobre as minhas costas pequenas bolas de fogo que revolteavam no ar como os nós amarelos dos raios das estrelas de Van Gogh, mas não me queimavam.
 
De que serviria arrepender-me?
 
Não fora uma bela corrida? Não fora um belo salto mortal?
 
De que me serviria agora essa culpa improdutiva que nascia de um falhanço tão espalhafatoso, mas que não dava para emendar coisa nenhuma?
 
Fora porventura um excesso de energia, um péssimo cálculo e uma forma particular de inocência a que amiúde chamam ingenuidade.
Portanto, lamentações para quê?
 
Belo quadro esse, cheio de fogo e estrelas dançantes.

A impotência perante os outros

Sonho CCLVIII

Estava sentado numa mesa em frente de um pai. Mais adiante, mesmo à frente de uma janela, estava a filha de doze anos, uma criança que nos colocava, pelo seu temperamento e pela sua inteligência, enormes desafios.

Olhava, mas não podia acreditar que os movimentos que a criança fazia fossem aqueles que a levariam a saltar da janela.

O pai estava de costas, mais perto da janela e mais perto da criança do que eu, pois entre mim e a criança havia aquela mesa enorme e o pai.

Desatei aos gritos e pedi ao pai que agarrasse na filha, mas ele não se voltou.

Há realidades, entre os que se amam, que exigem forças descomunais para poderem ser vistas.

Corri como um louco, voando por cima da mesa, mas não cheguei a tempo de impedir a criança de saltar.

Forcei-me a olhar para baixo.

Miraculosamente, a criança mostrava que era como um gato. Caíra de pé. Mas vi, pela terrível expressão do seu olhar, que iria tentar lançar-se de uma janela mais alta.

Um estranho no meio do caos, um refém involuntário da angústia, como um lúcido entre cegos, assim fica quem é apanhado no meio de uma loucura comunitária por acaso, sem aviso prévio. 



Quando a urgência é grande, os sentimentos escondem-se em tocas

Sonho CCLVII


A única forma de escapar dos meus inimigos tinha sido saltar pela janela do sétimo andar e correr pelo telhado.
 
Vivamente me espantava, enquanto corria, com a minha total ausência de medo.
 
O telhado desenhava um grande plataforma inclinada e hexagonal em torno de uma espécie de torre, também ela hexagonal.
 
Cada vez que passava por um dos vértices desse hexágono, olhava para trás para ver se alguém me seguia e corria o mais que podia.
 
O meu fôlego não era infinito. O meu peito doía como se fosse estalar, mas eu não parava nem um segundo.
 
De súbito, percebi que aqueles não eram os meus inimigos, mas uma equipa de resgate que nos vinha salvar como salvaram também os doze rapazes presos numa gruta na Tailândia.
 
Mil pessoas empenhadas nas operações para salvar doze rapazes é qualquer coisa que mostra o melhor da humanidade.
 
Tomado de exaustão, deixava-me cair diante dos meus salvadores, sobre o telhado.
 
Agora é que eu tinha muito medo, um medo que trepava por mim acima e me paralisava como um colete de forças, tinha um medo terrível das alturas e da inclinação daquele telhado. Agora é que um tal cansaço me invadia que todas as forças me abandonavam, e as lágrimas caíam-me dos olhos.
 
Estranho.
 
É estranho como até para chorar precisamos de um pouco de paz. 

Sobre uma praia de areias vermelhas

Sonho CCLVI


Naqueles tempos era vulgar que as pessoas viajassem todos os anos como forma de lazer e entretenimento.
 
A isso chamava-se turismo. Algumas pessoas pretendiam, com essas viagens, realizar um regresso à natureza e, ao mesmo tempo, ver coisas estranhas e maravilhosas.
 
A Françoise M., contra sua vontade, tinha sido apanhada numa dessas viagens e maldizia a sua sorte.
 
Tudo o que observava era que o regresso à natureza se fazia com todos os recursos da vida civilizada e que o hotel em que pernoitavam, à beira das praias e dunas selvagens, era igual a tantos hotéis em toda a parte, e por isso pouca diferença fazia que estivessem ou não a milhares de kilómetros das suas casas.
 
A Françoise M. sentia-se mais capaz de olhar as paisagens como um turista a dez kilómetros da sua casa, à beira do mar, do que ali naquele lugar mudo e distante em que sofria de uma angústia difusa e implacável por estar longe da sua cama, dos seus livros e do seu piano.
 
Nem todos são talhados para atravessar grandes distâncias e com isso ficarem felizes.
 
Ao lado da sua casa nunca um céu se repetia duas vezes, nem o mar era duas vezes o mesmo. Nesses arredores sempre infinitamente variados é que a Françoise se sentia livre e em paz para encontrar muitas coisas novas e maravilhosas todos os dias e para se surpreender com os seus pensamentos e com as suas perguntas, enquanto ali só conseguia pensar em todas aqueles gastos inúteis e em tanto dinheiro desbaratado, depois de ganho com tanta disciplina e sacrifício e, ainda que assim não fosse, que fazia falta a tanta pobreza no mundo.
 
A Françoise M. não percebia como fora apanhada em semelhante armadilha.
 
A praia tinha areias vermelhas e era tão inclinada que as ondas, quando subiam, arrastavam tudo para baixo como se fosse para um abismo sem fundo.
 
«Ali é que não me apanham.» - Pensava a Françoise, sentindo-se profundamente infeliz. - «Mas como é que eu vim aqui parar?»
 
Tinha tanto que fazer e com que ocupar o tempo sempre escasso e andava ali de um lado para o outro a olhar para as coisas como se todas as coisas não fossem sempre revelações em potência. Como se a revelação fosse intrínseca só às coisas e não à nossa postura diante das coisas!
 
Entre o grupo em que seguiam havia dois homens, um pouco mais velhos, que lhe faziam a corte.
 
A Françoise observava-os criteriosamente, mas não se sentia atraída por nenhum.
 
«Que estranha que é a atracção entre os humanos.» - Pensava a Françoise. - «Irracional a um ponto máximo, ou de uma lógica submersa e arrevesada que só compreendemos muitas décadas depois, ou que então nunca compreendemos.»
 
Um deles, sensual e com a figura atarracada, achava-se tão desejável como uma bandeja de frutas exóticas e maduras e nada de alternativo ou de diferente lhe parecia ocorrer.
 
O outro, curiosamente, tinha um fair play que não deixava a Françoise totalmente indiferente, apesar dos seus pensamentos em contrário. Fazia-lhe lembrar a pantera cor-de-rosa e, ao mesmo tempo, um tipo de ironista como o gato Garfield. Faíscas de humor puro saltavam dos seus olhos, compondo uma espécie de sub-riso que se ateava por todo o lado, a propósito de quase tudo e também de si mesmo.
 
Pois era magríssimo (ao contrário do gato Garfield), e usava sempre um kilt por cima das calças - coisa nunca vista! - cruzando as pernas com uma elegância mais do que feminina.