Diferentes tipos de morte

Sonho CCXCIX



Anaïs D. fora dar um passeio com P.

P. primava pela elegância e por um tipo de beleza viril e discreta, não pela conversa.

Que teria visto no seu livro, ao ponto de pedir para se encontrarem?

Parecia um homem conservador e com ideias reaccionárias, esclerosadas de tão usadas.

Teria lido o livro?

Anaïs surpreendia-se muito ao observar que a coisa que mais a atraia, e a única, nesse homem elegante e simpático, eram os seus três filhos pequenos e o olhar inteligente dessas crianças, invulgarmente gentil e um pouco triste.

Tinham dado um passeio para visitar uma capelinha no alto de um penhasco, com um alpendre sobre um abismo.

Chegados aí, Anaïs sentiu aquela familiar atracção pelo abismo, e pensou que fosse cair.

- Vou cair!... - gritou Anaïs.

P. lançou-se para Anaïs com a intenção de a salvar e caiu no abismo, mas Anaïs equilibrou-se e não caiu.

O abismo sobre o mar era altíssimo.

- Meu Deus... - pensou Anaïs - Como poderei ficar aqui sem fazer nada, a olhar para a queda de uma pessoa que tentou salvar-me?

E lançou-se também no abismo.

Enquanto caíam, Anaïs percebeu que estavam ligados por uma corda.

- É melhor tirar os sapatos. - pensou Anaïs - Assim hei-de conseguir nadar melhor. Também devia tirar a roupa, mas não sei se tenho tempo.

Anaïs tirou os sapatos que eram especialmente bonitos, todos em pele e bordeaux.

- Uns sapatos tão caros, todos em pele. - pensou Anaïs.

Nesse momento, Anaïs percebeu que conseguia suspender-se no ar, como se voasse.

- Afinal não valia a pena ter tirado os sapatos. - pensou Anaïs.

P. tinha caído no mar, mas não vinha à tona.

- Que se passa com ele?

Anaïs puxou-o com a corda e arrastou-o até uma pequena enseada.

Que colinas verdejantes e tão bonitas rodeavam aquele mar e os penhascos!...

- Tu sabes voar? - perguntou P. a Anaïs.

- Parece que sim.

Anaïs soltou uma sonora gargalhada.

- Mas não vou verificar outra vez se sei ou não sei!...

- E onde estão os teus sapatos?

- Descalcei-os para nadar melhor, mas afinal não foi preciso.

- Deve ter sido por isso que não consegui nadar. - disse P. - Estes sapatos...

E, olhando para os seus sapatos, olhava também para Anaïs com uma expressão de perplexidade, como se ela fosse um animal de outra espécie.

Anaïs podia ver no seu rosto que ele tentava fazer com que ela encaixasse numa das suas ideias do que poderia ser uma mulher, e ela não encaixava em nenhuma.

É também uma espécie de solidão, encontrar essa tentativa num rosto.

Anaïs sabia que esse seria o seu último encontro com P.

O coração dela parecia um instrumento morto.

Nenhuma corda vibrava.