Que poeira brilhante e esparsa existe




Que poeira brilhante e esparsa existe,
por aqui, nas atmosferas diáfanas
e nas cores que giram em danças átonas,
diz-me que poeira tão fina existe,

por aqui, por onde todos andamos,
e que coisa é nos olhos o esplendor
que nos varre e este estranho fervor
com que de súbito às cores rezamos.

Diz-me, diz-me de onde saltam os olhos
com que nos olham tantas coisas vivas,
quiçá mais vivas ainda que nós,

sérias, dançantes, as cores acendidas
com que ardem tanto estes deuses novos,
diz-me, que poeiras são estas vivas?





Igor Andropov


O caminho menos percorrido

Sonho CCXCV


Como as estradas à superfície da terra se tinham tornado intransitáveis, havia agora estradas debaixo da terra.

Essas estradas, como os vários andares de um parque subterrâneo, sobrepunham-se umas às outras como folhas de um livro ou placas de massa folhada num mil-folhas.

As estradas de cima, mais perto da superfície, eram apertadas e estreitas e estavam igualmente congestionadas.

As de baixo eram largas, estavam desimpedidas (quase vazias) e nelas circulavam (embora raramente) apenas ambulâncias e carros de pronto-socorro.

Podia ver todas essas estradas em corte, num diagrama que me era apresentado por um engenheiro.

- Por aqui circula-se muito bem. - dizia ele.

Eu circulava por ali, de facto, mas com uma angústia enorme.

Oprimia-me saber-me tão longe do céu e, de certo modo, tão perto do inferno.

Onde estava a minha coragem?

Não era com essa virtude que me arriscava pelo caminho menos percorrido.

Que seria de mim, se a terra tremesse, ou se alguma parede desabasse?

Haverá destino pior do que ser enterrado vivo?

Circulava em alta velocidade, por um desses túneis futuristas, brilhantes e redondos, sem vivalma à vista.

Poderia ser confundida com uma virtude, essa bravura, mas era mais uma mistura de orgulho com não sei que teimosia ou necessidade de experimentar andar por ali naqueles caminhos, com o ponteiro da velocidade no máximo.



Sobre a tortura

Sonho CCXCIV



Não há como descrever a sessão de tortura que ocupava a visão do sonho.

Depois de muito sofrer, sem tréguas, a dor de Anaïs D. transformou-se em prazer, num puro prazer inqualificável que transcendia o corpo como um vento que passasse por ele e que transcendia todas as fibras da sua carne para ser apenas um fluxo inominável e abstracto, uma onda sem nome e uma libertação que a deixava como um raio de luz flutuante ou um feixe de partículas esvoaçantes sem alma.

Os nossos recursos são infindáveis.

Será que até a morte podemos transformar em volúpia?

Agora era possível ir à praia de noite, porque as praias estavam iluminadas com amplos e gigantescos holofotes que substituíam a luz solar. 

Bela maravilha.

Em 1508, em Estraburgo, também coube aos milhares de miseráveis famintos dançar até à morte.

Shakespeare chamou-lhe "praga dançante".

Presentemente, muitas meninas passeavam os gatos ao colo, na via pública, como se fossem cães.