Crianças 15

(Isabel, de nove anos)



- Ó professora, faça lá a Rainha de Copas da Alice no País das Maravilhas, para o Santiago ver...

A professora, de dedo em riste e colocando a voz de modo a poder ouvir-se do outro lado do convento:

- CORTEM-LHE A CABEÇA!

A Isabel, perfeitamente maravilhada:

- Estás a ver, Santiago? Agora imagina, imagina só que a professora era mesmo a personagem, hem?



António Pizarro - Ínfimas notas sobre a morte, para uma outra escrita





É inegável: a morte é o limite da experiência. A morte, só conhecemos a dos outros. E a vida (assim como a morte) são-nos dadas como acontecimentos. Este acontecimento extraordinário da existência, como pensá-lo? Nunca conseguiremos pensá-lo, na sua totalidade. Poderemos dedicar a isso uma vida inteira, escrever centenas ou milhares de páginas - mil vidas não chegarão para explorar e dissecar todas as vias possíveis do pensamento. Uma oportunidade infinita. A vida é um mistério absoluto, que nos obriga sempre a pensar infinitamente, todos os dias. Recomeçamos inúmeras vezes, mas, no fundo, nunca recomeçamos. Partimos sempre do meio, nunca do princípio. Tentamos desfazer os estratos, as crenças, os lugares-comuns, as vaidades, as casas que nos abrigam e as ideias confortáveis que são tão atractivas mas que, por dentro, cheiram a inferno e a podre. Pensamos infinitamente, em múltiplas direcções. Muitas não conseguimos agarrá-las, são como sonhos esquecidos. Vamos por aqui, vamos por ali. Escrever é a nossa máquina de pensar. Uma máquina rudimentar e libertária. Ao escrever podemos ir muito devagar. Abrandamos de um modo inimaginável. Voltamos atrás, cortamos, dividimos, avançamos. Temos assim muitas lentes de aumentar e diminuir, para as nossas visões. Uma máquina de fazer zooms. Ampliamos a consciência para franjas e zonas cada vez mais difíceis, mais obscuras. Mas há uma coisa inegável, sobre a vida. Se a vida nos é dada, se a vida é um dom maravilhoso e absoluto e, em última análise, imperscrutável, ela não nos é dada como fatalidade. Poderá constituir, por si mesma, um mistério total. Poderá ser opaca, esplendorosa, infernal e avassaladora. Obrigar-nos continuamente a pensar em Deus, porque aquilo que sentimos nem sempre conseguimos traduzi-lo por palavras e porque há uma experiência do amor, do esplendor e da dor que nos lança continuamente em Deus. A vida poderá ser difícil e desafiante, como uma prova transcendental. Divina e sublime, em toda a sua infinita delicadeza e pluralidade. Surpreendente até ao último grau da nossa faculdade de imaginação. E poderá ser tentador pensar na sua anulação como um alívio para o excesso de intensidade e para a violência. Uma saída, no limite do desespero. Mas isso é toda uma outra discussão, que implicaria saber o que fosse a morte. A questão é que, perante a possibilidade real e verdadeira de morrer, perante a possibilidade de executar a nossa própria morte, a vida também nos é dada como escolha. Aí, sim, há uma dificuldade avassaladora, em que muitos preferem não pensar. É a vida como acto puro de liberdade, é o dia como abertura infinita. É todo o sentido e des-sentido que diariamente repensamos e reinventamos. E é a necessidade de criar uma outra ética, totalmente nova, singular e revolucionária.

Cadernos de Bernfried Järvi - de Rui Manuel Amaral





Este livro começa e acaba com duas citações eloquentes. A primeira, de Erik Satie, datada de 1922, diz o seguinte:

Chamo-me Bernfried Järvi como toda a gente.


A última, de Vincent Van Gogh, data de 1888 e diz assim:

No meu quadro Café Nocturno, tentei exprimir que o café é um local onde se pode cair em desgraça, enlouquecer, cometer crimes. Quero dizer, em contrastes de rosa tenro e de vermelho-sangue e borra-de-vinho, de verde Luís XVI suave, e veronese, a contrastar com os verdes-amarelo e os verdes-azul duros, tudo isso numa atmosfera de fornalha infernal, de enxofre pálido, tentei exprimir como que o poder das trevas de uma taberna. 

E contudo, sob uma aparência de alegria japonesa e a bonomia do Tartarin...


Que o narrador e personagem principal deste livro se chame Bernfried Järvi (como toda a gente) é de certo modo tão paradoxal como natural, à boa maneira do subtil e perspicaz Erik Satie. Não é que alguém se chame qualquer coisa como toda gente. Não é que alguém tenha um nome como toda a gente. Mas que seja homo tantum (homem apenas, homem só) - como toda a gente. Bernfried Järvi, esse discreto e quase imperceptível monomaníaco do amor que deambula, entre excêntricos companheiros com nomes improváveis (ociosos, pregadores, poetas, semi-loucos, filósofos e visionários), nas franjas de um niilismo singular, do seu quarto, para o café, para o escritório, em Aachen, cidade alemã de cujos quatro ponto cardeais saem quatro estradas - e a mais longa termina, não por acaso, no Porto.

Haveria muito a dizer sobre este livro. Sobre os retratos minuciosos e surpreendentes da atmosfera, tão vivos como a preciosa enumeração da lista de cores na citação de Van Gogh; sobre as descrições do pó e a sua articulação com os relatos de sonhos. Muito haveria a dizer sobre Pagreus, Milo, Helmut, Else, Marcus, Heike, Vanhelle e todos os habitantes do café que flutuam numa atmosfera de fornalha infernal, de enxofre pálido - e sobre o seu desespero, humor ácido, niilismo, extravagância e fervor - a que a escorreita prosódia teatral faz juz.

Mas ocorre-nos um pequeno artigo de Deleuze, intitulado "A imanência: uma vida...", datado de Setembro de 1995. Um curto texto de quatro páginas e o último publicado pelo autor antes do seu suicídio. Neste texto, Deleuze procura explicar o conceito de campo transcendental, que se distingue da experiência (na medida em que não reenvia a um objecto, nem pertence a um sujeito). Esta formulação, que pode parecer opaca, descreve algo de vivo, concreto e real, ainda que difícil ou talvez impossível de pensar. Não cabe aqui a explicação minuciosa destes termos que implicam uma passagem detalhada por Espinosa e pelo conceito de representação empírica. Mas um campo transcendental, entendido como puro plano de imanência, não tem forma mais directa de ser compreendido do que percebendo que a pura imanência é uma vida - "uma vida, e nada mais. Uma vida como imanência absoluta, potência, beatitude completas", diz-nos Deleuze. E o exemplo vem de Dickens, do terceiro capítulo do romance Amigo Comum:

O que é a imanência? uma vida... Ninguém melhor que Dickens descreveu o que é uma vida, tendo em conta o artigo indefinido como índice do transcendental. Um crápula, um mau tipo desprezado por todos, é trazido às portas da morte e eis que aqueles que o cuidam manifestam uma espécie de impressão, de respeito, de amor pelo mais pequeno sinal de vida do moribundo. Toda a gente se empenha em salvá-lo, ao ponto de, no mais fundo do seu coma, o vilão sentir qualquer coisa de suave a penetrá-lo. Mas, à medida que regressa à vida, os seus salvadores tornam-se mais frios e ele recupera toda a sua grosseria e mesquinhez. Entre a sua vida e a sua morte, há um momento que não é mais do que uma vida jogando com a morte. A vida do indivíduo deu lugar a uma vida impessoal e contudo singular, que liberta um puro acontecimento livre dos acidentes da vida interior e exterior, quer dizer, da objectividade e da subjectividade do que acontece. «Homo tantum», do qual toda a gente se compadece e que alcança uma espécie de beatitude. É uma hecceidade, que não é mais de individuação, mas de singularização: vida de pura imanência, neutra, para além do bem e do mal, porque apenas o sujeito que a incarna no meio das coisas a torna boa ou má. A vida de uma tal individualidade desaparece em proveito da vida singular imanente de um homem que já não tem nome, se bem que não se confunda com nenhum outro. Essência singular, uma vida... Não se deve conter uma vida nesse simples momento onde a vida individual defronta a morte universal. Uma vida está por todo o lado, em todos os momentos que atravessam este ou aquele sujeito vivo e que medem tais objectos vividos (...)*


Custa-nos interromper a citação, quando este texto extraordinário de Deleuze daria ele mesmo para escrever muitas páginas, a propósito de cada uma das suas frases. É como uma grande árvore de cujos ramos podem nascer muitos frutos. Precisamente no reconhecimento desse homo tantum, no encontro com esse homem apenas (homem só), porque é que uma espécie particular de amor acontece? O exemplo de Dickens serve como ponto de partida para um reconhecimento. Mas esse ponto de partida passa por uma espécie de amor peculiar - a compaixão. Outras formas de amor poderiam ser investigadas, como momentos de reconhecimento desse homo tantum - como acontecimentos dessa visão ardente, ou como formas de epifania, diríamos nós. Todo um novo evangelho se poderia escrever - qualquer coisa de revolucionário. Não é afinal possível que cada forma de amor em estado puro não seja mais do que um acontecimento dessa visão pontual e extraordinária? A marca desse encontro transcendental e dessa passagem para um plano de imanência, onde os estratos se libertam? Paixão em estado selvagem, compaixão, caritas, filia, eros em osso. Neste romance, não é por acaso que o grande acontecimento do enamoramento de Bernfried Järvi por Else é descrito como um grande arco de esperança e desilusão. Ainda que um humor feroz cerque o fervor de cepticismo, há uma inocência e uma candura que sobrevivem, com uma tímida chama, mas notável. Será que em toda a paixão é esse homo tantum que nos acontece amar, como que numa visão esplendorosa que é, por si só, já um acontecimento? Uma vida. Bernfried Järvi deixa-nos esta suspensão, este vazio, este fervor e esta perplexidade. Esta trança obtusa entre o entusiasmo, o cepticismo e o terror. Uma vida que simplesmente passa com o seu excesso, os seus tempos flutuantes, as suas observações dispersas, singulares, brilhantes ou imprevistas; e os seus assombros, lucidez, entusiasmo e indiferença. O seu absurdo. O seu humor acutilante e desesperado.

«Adeus, meu pulmãozinho, adeus, meu fígado, adeus, meu estômago, adeus, meu joelhinho branco como a neve. / Fiquei a vê-la afastar-se, até desaparecer de vista. / Caiu um aguaceiro repentino.»**




* Gilles Deleuze, Deux Régimes de Fous, Textes et Entretiens 1975-1995, Édition préparée par David Lapoujade (Paris: Les Éditions de Minuit, 2003), pp. 361-362, tradução minha.

** Rui Manuel Amaral, Cadernos de Bernfried Järvi (Porto: Livraria Snob, 2019), pp. 104-105.