Sobre as palavras que não há

Sonho CCXCI


Do nada, num encontro de amigos, a Maria do Mar ficou apaixonada dos pés à cabeça.

Era qualquer coisa naquele rapaz, a sua magreza excessiva, os caracóis brilhantes e negros, um pouco disparatados, o rosto anguloso e medieval, os dentes tortos e os olhos brilhantes, qualquer coisa que lhe tocava como uma composição mágica ou um hieróglifo que trazia em si a promessa certa de uma máxima alegria e de um encontro transcendental, indecifrável.

Não, a Maria do Mar não podia ficar sem fazer nada perante aquele acontecimento raro e a graça daquele entusiasmo que nem sequer de dez em dez anos a visitava.

Correu pela Rua Garrett acima para saber o nome do rapaz que entretanto se despedira, mas ele era gago e tinha dificuldade em pronunciar o seu nome, o que o deixava envergonhado.

Isto só tinha o poder de a encantar ainda mais, contra tudo o que ele pudesse pensar.

Ele correu como uma criança a quem a vergonha faz fugir, e depois voltou:

- Io non mi sento solo. - era o seu nome.

- Estranho nome!... - pensou a Maria do Mar, a quem nunca passara pela cabeça que frases numa língua estrangeira pudessem servir de nome a alguém.

E desapareceu. Mas a Maria do Mar não desistiu enquanto não o reencontrou.

Descobriu que o rapaz era indiano e que ele e a sua mãe estavam à procura de uma nova casa para viver, por causa da velocidade com que agora se renovavam os contratos de arrendamento, sempre com rendas cada vez mais altas. 

A Índia moderna não tinha fama de ser gentil com as mulheres, mas a Maria do Mar, ainda assim, não quis ficar refém de um mero preconceito e foi ver com ele um espectáculo de danças tradicionais indianas.

As crianças dançavam em grandes serpentes de mãos dadas no meio da penumbra e da escuridão, enquanto as mulheres giravam com saias de fogo. 

A Maria do Mar estava maravilhada e queria dançar também, com as crianças e as mulheres.

Ninguém dançava para ser visto. Todos dançavam na semi-obscuridade de um campo aberto, numa quase escuridão perfumada pelo cheiro das ervas, do orvalho e da terra batida.

Tudo aquilo era tão fascinante que a Maria do Mar não parava de absorver e gravar tudo com os olhos, como se estivesse hipnotizada.

As orlas das saias das mulheres ardiam com chamas verdadeiras, mas elas tinham uma técnica para não se queimarem.

A Maria do Mar queria aprender, mas o rapaz estava verdadeiramente irritado com a Maria do Mar.

- Tu e esses teus livros, - dizia ele, com uma mal disfarçada impaciência - julgas concerteza que o amor que começa no estômago não passa para o coração?

Na meia luz não se viam as lágrimas nos olhos da Maria do Mar, que se levantou sem sequer dobrar o casaco.

Ela queria tanto não ter percebido nada do que fora dito, nem essas notas de impaciência naquela voz, que lhe diziam que ela já se tinha tornado insuportável, de um modo perfeitamente involuntário.

Queria tanto não sentir aquela espécie de opressão, como um laço de forca na sua garganta, mas de nada lhe servia esse desejo. Mesmo sem falarem, o pensamento dele já tinha treslido e julgado tudo o que ela pensava, sem sequer saber o que ela pensava, realmente.

Como era possível que viessem a entender-se?

Havia também aquele pequeno ódio contra o seu eixo de alegria, os livros. Podia ter sido isso ou outra coisa qualquer, talvez fazer jornalismo activista pelos direitos humanos, qualquer coisa, pequena ou grande, com que inventasse um sentido para a sua breve vida e que a mantivesse de pé, qualquer coisa com que valesse a pena viver e fazer uma pequena diferença.

E ali estava aquele pequeno ódio, como um veneno intolerável.

- Adeus. - disse a Maria do Mar. 

Mas enquanto se afastava ainda desejou com todas as suas fibras que ele quebrasse com boas palavras aquela triste coisa, que emendasse de algum modo aquele abismo e que a salvasse de uma lucidez tão crua.

Mas não houve nenhuma palavra.

A Maria do Mar tomou o caminho mais longo, à beira do mar.

O vento era frio e cortante, o ar perfumado de iodo e sal, as ondas erguendo a sua crista de espuma, no cinza brilhante e esbatido que unia o mar e o céu, sem linha de horizonte.

Que paisagem magnífica...

Aí podia caminhar-se entre o esplendor.