Liberdade

Sonho CCLXXXV



Tratava-se de uma instituição que reeducava raparigas e cujo objectivo geral consistia em cortar-lhes a cabeça.

Não que as raparigas morressem, depois de cortadas as respectivas cabeças.

Simplesmente tornava-se possível colocar e tirar as cabeças, conforme a necessidade.

No enorme refeitório onde comiam mais de mil raparigas, chegavam à minha mesa duas a quem tinham acabado de cortar a cabeça.

Uma delas decidira colocar a cabeça em cima do prato, separada do corpo.

Dizia: «Prefiro comer assim.»

Mas como poderia comer assim?

A outra rapariga, que era extremamente bonita, tinha a cabeça colocada no corpo, e via-se uma linha de crosta no lugar em que se operara o corte. 

Tudo o que via era de uma nitidez extrema e ofuscante, colorida e aguda, que me varava dos pés à cabeça, mas não conseguia fechar os olhos.

- Não dói? - perguntava eu.

- Não. - respondiam ambas.

Mas havia uma tristeza nos seus rostos, um pudor, ou uma espécie de vergonha, que trazia o relato de outra dor.

Dedicava-me a observá-las muito bem, com uma máxima delicadeza e atenção. 

Porque é que as vítimas ficam tantas vezes com a culpa e a vergonha dos algozes?

Não estava disposta a deixar que me reeducassem, mesmo que a reeducação fosse indolor.

Quando chegava a minha vez, dizia que não, que não queria que me cortassem a cabeça.

- Essa escolha terá as mais graves consequências. Não poderás ficar aqui, nem terás onde ficar.

- Está bem.

Regressava ao enorme refeitório onde ainda estavam todos, sabendo muito bem que o pior estava para vir.

Todas as outras raparigas, vendo que tinha sido chamada e que continuava com a cabeça ligada ao corpo, me olhavam com desconfiança.

Só que mesmo esse preço, o da exclusão, era pequeno, comparado com o outro que sabia vir a ter de pagar.

Apareceu o meu algoz, de olhos gelados e figura imponente, e fitou-me fixamente.

Como resposta, cuspi-lhe nos pés.

Defendia-me, com esse enorme orgulho que tinha, do grande medo que sentia.

«Que grande sofrimento se aproxima... Quem sabe não seria melhor deixar que me cortassem a cabeça... Ai!...»

Mas aquelas imagens coloridas das linhas de corte nos pescoços estavam fixas no interior dos meus olhos como fachos incandescentes, como pelourinhos de morte.

Com os braços abertos agarrei de costas uma barra das grades, como se estivesse sobre uma cruz, e gritei com todas as minhas forças, o mais alto que consegui:

- Deus!... Ajuda-me!...

Sabia por experiência própria que se clamasse com toda a fé e todas as fibras do meu ser, alguma coisa tremenda se moveria no universo obscuro para me salvar. 

Então saltei de repente para cima de uma dessas imensas mesas compridas e, empurrando o que estava em cima para o chão com os pés, comecei a improvisar uma espécie de rap

Logo um grupo de jovens negras e mulatas se juntou a mim e fizemos, não sei como, uma bela música, enquanto muitas pessoas na sala filmavam.

Enquanto dançávamos, éramos intocáveis. Nada nem ninguém poderia sequer assombrar a nossa inocência que era na verdade apenas um pouco desse elemento selvagem que tanto lutávamos por fazer resistir.

Era um mau poema, ora em português, ora em inglês, mas quem, em tal situação, poderia orgulhar-se de fazer melhor?

Não sou negro
mas é como se fosse
porque sou pobre
e tenho um pescoço

I am not black
But it's as if I were
Because I'm poor
And have a neck


Apesar da energia do ritmo e da intensidade com que dançávamos compensarem o mau que era a letra, tínhamos o tempo contado. 

Mesmo a uma fracção do fim da nossa dança, aproveitei aquele momento de distracção e, com um salto, voei para o chão e desatei a correr com todas as minhas forças, sem nunca olhar para trás.

Não há dúvida. Quando as forças são demasiado desiguais, a melhor solução continua a ser a mais antiga: fugir.

Já muito longe é que verifiquei que ninguém me perseguia.

Era só uma entre muitas raparigas. 

Mais cabeça... menos cabeça... que interessava?

Porém, tudo seria novo a partir dali.

A solidão, a incerteza e o desconhecido.

Sentei-me no chão e pude verificar que, nem sapatos, nem casaco, nem relógio tinha.

Como pudera correr assim tanto de pés descalços?

Tinha apenas umas leggings pretas e uma camisa branca de algodão que já nem tinha todos os botões, por causa da dança que tínhamos improvisado.

Mas tinha uma sensação de liberdade que quase me intoxicava.

Essa liberdade fazia com que sentisse uma força incrível.

E agora?